A aposta de Alberto Mussa no jogo do bicho

"A extraordinária Zona Norte" (Todavia, 2024) reflete a ilegalidade tolerada do jogo do bicho e suas demais contradições

Há muito de real na ficção de Alberto Mussa, romancista policial e, pode-se dizer também, histórico. A extraordinária Zona Norte (Todavia, 2024) reflete a ilegalidade tolerada do jogo do bicho e suas demais contradições e contravenções. “Vale o escrito”, um dos bordões do métier da loteria ilegal, zomba da Constituição ao afirmar que esta não vale tanto quanto aquela. Vale entrar no mundo da cultura carioca forjada no crime organizado.

O romance se passa nos anos 1970. Mas é incrível como parece que foi ontem, tão impressionante é o envolvimento de políticos muito influentes na República e de seus familiares com milicianos, particularmente no Rio de Janeiro.  A milícia é cria do Esquadrão da Morte, formado por policiais que se corromperam. Mussa revela esse mundo com uma gama de personagens muito elaborados e bem costuradinhos.

Um thriller criminal onde a linguagem contemporânea é misturada com a narrativa de um Nelson Rodrigues versão 2.0, referência abertamente citada pelo premiado autor. Sobre Asfalto selvagem, Mussa faz elogio rasgado a Rodrigues e aproveita para citar outras referências literárias de peso: “Logo nas primeiras páginas, nos primeiros parágrafos, percebe que o tricolor havia alcançado as alturas de um Dostoiévski, um Machado, um Melville, um Dumas, um Victor Hugo, uma Agatha Christie”.

Mussa já abocanhou prêmios como o Casa de Las Américas, Academia Brasileira de Letras, Oceanos, Machado de Assis e APCA. E sua obra já foi publicada em 19 países e 16 idiomas. O autor ganhou ainda mais notoriedade em 2024, quando o romance Meu destino é ser onça (2008, Record) virou samba-enredo da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, na Marquês do Sapucaí.

Voltando à Zona Norte, o cenário escolhido é íntimo do autor: os bairros do Andaraí e Grajaú - onde Mussa viveu a juventude. É lá que somos apresentados ao policial Antenor Baeta, o Juba, detetive da polícia civil que tomou chá de sumiço depois de uma chacina ocorrida numa sexta-feira 13 de maio de 1966, no galpão onde funcionava a antiga quadra da extinta escola de samba Floresta do Andaraí. Anos depois, o local passou a ser ocupado por frequentes rinhas de galo. “Fiz um esboço da planta baixa dessa rinha, que vocês podem ver nas últimas páginas do livro”, escreve o narrador participante. Uma ossada encontrada em um terreno baldio faz ressurgir o caso e as indagações sobre o paradeiro de Juba, suposto alvo da chacina.

Entre diálogos e fatos, Mussa introduz um pouco da origem do Esquadrão da Morte, do bandido Cara de Cavalo e da história recente do Brasil: o assassinato da vereadora Marielle Franco, cujo um dos autores, Ronnie Lessa, é egresso do esquadrão. Esse enredo não está cantando no livro, mas as pistas são suficientes para levantar a curiosidade do leitor sobre a Scuderie Detetive Le Cocq, primeiro grupo de extermínio do Brasil, surgido nos anos 1960 com objetivo de vingar a morte do detetive Milton Le Cocq d’Oliveira, ex-integrante da guarda pessoal de Getúlio Vargas. Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, teria sido o suposto assassino. Suposto porque versão do caso dá conta de que Le Cocq foi morto por tiros disparados pelos próprios policiais, e que Cara de Cavalo, segurança do jogo do bicho, não teria reagido. Mas saiu como culpado, foi literalmente caçado e levou 50 tiros. Coisas da nossa injusta justiça com as próprias mãos, que não admite bandido pobre mas faz vista grossa para bandido rico.

O autor também destrincha o perfil do típico jogador de bicho e suas maneiras de acertar o resultado dos sorteios: sonhos, placas de carro e figuras formadas pela borra de café no fundo da xícara. Puxando a brasa para a sardinha da leitura, esse hábito que cada vez menos brasileiros praticam, Mussa revela que o personagem Domício Baeta, primo de Juba e detetive particular, encontra palpites para fazer uma fezinha a partir dos livros que lê no ônibus. E nas horas vagas. A personagem Engraçadinha de Nelson está para Capitu e Dona Flor tanto quanto está para Ana Karênina e Madame Bovary. São as “mulheres antropológicas” de Mussa, aquelas que, escreve ele, “tinham a excêntrica mania de dar pra um homem só”. Afora Lispector, Proust, Joyce, Faulkner e Thomas Mann, o detetive literário é dono de uma biblioteca antropológica de personagens reais e fictícios, tal como o próprio escritor.

A escola de samba dessa história é também da vida real. A Floresta do Andaraí surgiu nos anos 1950. Um de seus sambas-enredos, de 1957, foi Cativeiro de Hans Staden, sobre o mercenário alemão que passou nove meses como escravo dos tupinambás, cujo mito se relaciona com as teorias científicas sobre a origem do mundo.

Alberto Mussa se estabelece como um descendente da antropologia do samba e dos rituais das religiões de matriz africana, sobre as quais discorre enquanto narra o ágil romance.