Louis-Ferdinand Céline, médico e escritor francês (1894-1961), conhecido sobretudo por seus grandes romances Viagem ao fim da noite, de 1932, e Morte a crédito, de 1936, passou por uma redescoberta recente e impressionante: manuscritos seus foram recuperados depois de 60 anos – entre eles, um romance inédito, Guerra, que acaba de ser traduzido no Brasil. Os papéis de Céline foram roubados de seu apartamento em agosto de 1944, durante a Libertação de Paris, quando o escritor e sua esposa – notórios colaboradores nazistas – fugiram para a Alemanha. Em 2021, as milhares de folhas reaparecem, causando uma sensação na cena literária francesa, intensificada quando a Biblioteca Nacional da França pagou um valor milionário pelo material. Já no ano seguinte, 2022, a prestigiosa editora Gallimard lança uma edição de Guerra e, logo em seguida, também de Londres, outro romance inédito que faz parte do espólio recuperado.
Na condição atual, Guerra não é propriamente um romance, mas um esboço de romance, uma primeira versão que Céline certamente elaboraria e revisaria. Ainda assim, conserva a vivacidade característica do autor, que encontramos em outras narrativas já traduzidas e publicadas no Brasil – como é o caso, por exemplo, do romance De castelo em castelo, que descreve a fuga de Céline pela Alemanha no fim da Segunda Guerra, depois de fugir de Paris, e de Norte, continuação ainda mais intensa do relato precedente (trata-se de uma trilogia que se encerra com o romance Rigodon, lançado de forma póstuma e ainda inédito no Brasil). Guerra, portanto, é um livro que pode ser lido em contraste e contato com esses romances posteriores de Céline, por ao menos duas razões: em primeiro lugar, porque os romances posteriores documentam o cotidiano da fuga dos colaboradores nazistas nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial, que é o contexto imediato do roubo dos manuscritos de Céline; em segundo lugar, porque Guerra documenta a participação de um Céline ainda jovem na Primeira Guerra Mundial, experiência que foi determinante tanto para sua visão de mundo quanto para a intensificação de suas posturas ideológicas reacionárias nos anos do período entreguerras.
Com essa relação complexa entre os distintos períodos da trajetória do autor em mente, é possível chegar à ideia de que a literatura de Céline sempre envolveu uma negociação tensa entre autobiografia e imaginação. A fortuna crítica dedicada ao autor está cheia de textos que investigam os vários detalhes que fazem parte seja da biografia, seja da obra. O autor sempre utilizou cenas e elementos de sua vida em seus romances, e em Guerra não é diferente: o evento central do livro é a experiência de quase morte do próprio Céline no fronte da Primeira Guerra Mundial, em outubro de 1914, em Poelkapelle, Bélgica. “Não sabia onde estava o outro braço”, escreve o narrador depois da explosão; “ele tinha subido pelos ares, bem alto, rodopiava no espaço e depois tornava a descer para me puxar pelo ombro, na carne a cru. Isso me fazia berrar um tempão, toda vez, e era ainda pior”. A narração começa nesse ponto extremo de ruptura, embora seja revisitado pela memória depois que o corpo já está (mais ou menos) restabelecido. O protagonista evoca a si próprio “sempre gritando”, relembrando “o horror de estrondo que me arrebentava a cabeça, dentro, que nem um trem”, e concluindo: “Não adiantava nada me revoltar”.
A ação de Guerra começa quando seu protagonista, Ferdinand – narrador que é uma espécie de duplo de Céline –, deixa a guerra para trás: ao acordar ferido, percebendo aos poucos que é o único sobrevivente de sua unidade, ele começa a vagar pelos campos, iniciando a trajetória que será, também, aquela do romance. Nesse ponto, já encontramos um tema que será recorrente e fundamental na poética de Céline como um todo – ou seja, o deslocamento, a viagem e a errância. Ferdinand está sempre em movimento: seu primeiro encontro é com um soldado inglês, com quem vai até a cidade de Ypres; depois de desmaiar mais uma vez por conta dos ferimentos, acorda em um hospital de campanha, instalado em uma igreja que dentro de poucos dias será destruída por um bombardeio. Não é possível firmar os pés ou fincar raízes, tudo ao redor está sendo destruído durante a progressão do protagonista e seus companheiros. Depois da destruição do hospital de campanha, Ferdinand embarca em um trem que o leva a um hospital militar, no qual passa pela primeira operação cirúrgica. As semanas seguintes serão ocupadas pelos preparativos de uma viagem para a Inglaterra – tema do outro romance de Céline que foi redescoberto, Londres.
Os eventos são sempre transformados pela linguagem e pelo estilo de Céline, que frequentemente dá uma pátina de exagero e comicidade com seus adjetivos e seu registro peculiar da fala coloquial (como podemos ler em uma das cenas de Guerra: “Tome cuidado, sua bruaca, você vai machucar o meu pé. Me traga dois picons e se arranque. Talvez essa fulana vire minha substituta, uma porqueira, mas preciso primeiro ir ver Angèle...”). O contexto geral e anônimo da guerra é filtrado pela perspectiva específica de um protagonista que oscila entre a resignação e a raiva, entre a apatia e o desespero. Por vezes, Ferdinand abandona a própria perspectiva em prol da visão de mundo de outras e outros, personagens pitorescos que encontra ao longo do caminho (prostitutas, cafetões, garçons, maquinistas). Em outros momentos, seu olhar se fixa nos companheiros de trincheira, em outros soldados tão destruídos e desamparados quanto ele: “A gente sabe muito bem que teria de dormir para voltar a ser um homem como os outros. A gente também está cansado demais para ter o ímpeto de se matar. Tudo é cansaço”.
Quem serviu na guerra foi “Louis Destouches” (nome de batismo do autor), mas quem transformou a experiência em narrativa foi “Louis-Ferdinand Céline” (pseudônimo construído a partir do sobrenome de solteira da mãe). A cena de abertura do romance, contudo, vai repercutir ao longo da trajetória de vida das duas figuras: os ferimentos deixam sequelas (dores de cabeça, tonturas, vômitos) que tornarão o cotidiano de Destouches muito penoso; por outro lado, é esse sofrimento físico crônico que alimentará a literatura de Céline, sempre inquieta e impiedosa, sempre às voltas com cenas de desespero e desencanto, sempre refratária às fórmulas fáceis de pena e piedade. O veículo desse sofrimento, no entanto, é a música de uma linguagem inimitável (que a tradução de Rosa Freire d’Aguiar apresenta de forma notável no português). Em um ensaio sobre Hans-Jürgen Syberberg, Susan Sontag fala que a força das obras de Céline aniquila outras obras no momento da comparação – uma força que vem de certa “melodia interminável” que ela reconhece no autor de Guerra.
Por fim, é possível dizer que não se trata de um livro tradicional sobre os conflitos bélicos – apesar do título sucinto e declarativo, Guerra, induzir a tal ideia. Não se trata de um companheiro de jornada de obras como Nada de novo no front (Erich Maria Remarque) ou Tempestades de aço (Ernst Jünger). Céline trabalha no registro irônico e provocativo de alguns de seus predecessores, como François Villon, François Rabelais e Gustave Flaubert, e com muita frequência esvazia a solenidade de temas fortes como a morte e a guerra. É por isso que o romance póstumo – escrito nos primeiros anos da década de 1930 – de Céline ainda guarda boa parte de seu frescor, mesmo cem anos depois: o narrador é incisivo em seus juízos e preciso na construção de seus personagens, desviando pelo caminho sem grandes preocupações com enredo, coesão ou consistência. Essa despreocupação, nas mãos de um escritor de primeiro escalão como era Céline, se transforma em dinamismo, fazendo de Guerra um romance estimulante e instrutivo.