Nunca estive com o escritor argentino Ernesto Sabato. Desde que li pela primeira vez O túnel, seu romance de 1948, planejei conhecê-lo. Em minhas idas a Buenos Aires, algum obstáculo – uma troca de endereço, um desencontro, uma gripe – me impediam de chegar a ele. Quando soube que Sabato morreu, em 2011, perguntei-me por que me proibi de vê-lo
Folheio meu exemplar de Heterodoxia, seu livro de pensamentos, de 1953. Abro-o ao acaso e esbarro em uma nota a respeito da dose suportável de verdade que limita os atos humanos. Sabato cita Nietzsche: “Quanta verdade suporta, de quanta verdade é capaz um espírito”? Talvez houvesse algo em meu encontro hipotético com Sabato que eu não aguentaria. Pode ser que hoje eu só esteja vivo porque nunca nos falamos.
Há alguns anos, em um passeio por Buenos Aires, parei para um lanche na Confeitaria Saint Moritz, a preferida de Jorge Luis Borges. Não poderia imaginar que, em uma mesa ao lado, estaria o próprio Sabato. Não o verdadeiro Ernesto Sabato, o autor de Abaddon, mas um sujeito sinuoso e mesquinho que se passava por ele.
Eu folheava O túnel, quando o garçom me trouxe um bilhete. “O senhor de bigodes tortos pediu que lhe entregasse.” Apontou para um homem solitário, de barbas medonhas, que ocupava uma mesa ao lado. No bilhete, que ainda eu guardo, está escrito: “Seria uma honra tomar uma taça com o senhor. Prepare-se para um grande golpe”. Estava assinado: “ES”.
Nem a coincidência das iniciais me levou a pensar em Ernesto Sabato. Não sei por que– talvez pela solidão, ou pelo dia chuvoso – resolvi atender seu convite. Apresentei-me. Sem nenhum pudor, o sujeito me disse: “Sou o verdadeiro Ernesto Sabato”. Argumentou que o homem enterrado em 2011, em La Recoleta, não passava de um dublê. “Um insano que, um dia, cismou que era o Sabato verdadeiro”.
Não devemos contrariar os loucos. Agradeci pela confissão. “A honra é minha, nem sempre se pode estar com um autor que amamos”, eu disse. Foi nessa hora que a pergunta, formulada por Sabato em Heterodoxia, me veio: “De quanta verdade é capaz de suportar um espírito”? A mesma pergunta que hoje, folheando seu livro, eu reencontro. A mesma pergunta que até hoje não sei responder. A verdade é que a verdade quase me destruiu.
Explico. Durante um par de horas, dialoguei com o sujeito como se ele fosse o verdadeiro Sabato. Mostrei-me chocado com a fraude que simulara sua morte. Lamentei que os argentinos, ainda naquele momento, não conhecessem a grande verdade: que Sabato continuava vivo. Sustentei, o melhor que pude, minha falsa indignação. Em segredo, eu me perguntava até onde seria capaz não de suportar a verdade, mas de suportar a mentira.
Chegou o momento perigoso em que o vinho me encorajou e eu o desmascarei. “Posso ser sincero”? – perguntei. “O que o senhor pretende ganhar com essa farsa”? Para meu horror, o sujeito ficou realmente ofendido. “Como ousa duvidar de mim”? Pedi que me desse uma prova concreta de suas afirmações. Uma prova de que ele, Sabato, existia. Foi aí que o pior aconteceu.
Ergueu-se, subiu na cadeira e, com uma voz apavorante, anunciou: “Este homem deve ser preso”. Houve um alvoroço. Mulheres gritavam. Um garçom parrudo me segurou pelas costas. “Vamos com isso, antes que seja tarde”, o falso Sabato bradava. Um policial entrou no salão. Pouco depois, me vi em uma delegacia. Constrangido, o policial que me conduzira não sabia explicar por que eu fora preso. “Tentei apenas prevenir o pânico.”
Resumi minha história. Desculparam-se. O delegado chegou a posar para uma foto ao meu lado. “É para os anais da delegacia”, me disse. O reconhecimento de seu erro – da mentira – me salvara. A mentira salvara a todos nós do peso da verdade, eu penso agora. Enquanto isso, o falso Sabato continuava à solta. Ainda voltei à confeitaria na esperança de reencontrá-lo. Ninguém me reconheceu. Não havia Sabato algum.