O Fausto do Irajá

Termino, abalado, a leitura do Fausto, de Thomas Mann. Ao longo do romance, sobrepondo-se à figura de Adrian Leverkuhn, impôs-se a imagem embaçada de Benjamin Nakamura, amigo de meus pais, que tinha o hábito infeliz de nos visitar. Depois da morte de minha mãe, as coisas se inverteram. Uma vez por ano, eu, sim, me sentia obrigado a pegar um ônibus até a Estrada Padre Roser, já na fronteira da Vila da Penha, para retribuir sua dedicação.

Era uma obrigação penosa, que me enchia não só de desgosto, mas de raiva. O senhor Nakamura tinha sido um leitor dedicado dos filósofos antigos. Certo dia, ele se deteve diante de um fragmento de Heráclito. Diz o filósofo grego: “É a presunção que deve ser apagada mais do que o incêndio”. Benjamin Nakamura entendeu a frase de Heráclito como uma advertência, dirigida pessoalmente a ele. Passou a odiar a afetação, a empáfia, a arrogância. Meditou longamente a respeito de suas causas e concluiu, em um desvio fatal e doentio, que a culpa era do conhecimento. Passou a desprezar qualquer forma de saber.

Doou seus livros. Teve o desejo de queimá-los, mas se lembrou da sentença de Heráclito e concluiu que, ainda mais destruidor que o incêndio, é o desprezo. Quando cheguei a sua casa, em um dia em que o Irajá se assemelhava a um forno, o senhor Nakamura me levou até sua biblioteca. Estava vazia. Nela havia uma faixa, estendida na parede. Estava escrito: “Só a ignorância é humana”.

Passou a defender a idiotice e o obscurantismo como valores sagrados. “Devemos nos orgulhar da ignorância, pois só ela nos liberta da afetação”, me disse. Confidenciou-me, ainda, que fizera um pacto com o Maldito. “Pedi que nunca me deixe ceder às tentações da sabedoria.” Em troca, depois de 30 anos, lhe entregaria sua alma. E agora o senhor Nakamura se vangloriava de seu desprezo pelo saber. “As escolas devem ser fechadas”, diagnosticou. “Mais do que isso, devem ser incendiadas”. Argumentou ainda que o destino de todos os filósofos é a estupidez. “O conhecimento é circular”, filosofou. “Quando o círculo se fecha, você chega à burrice”. Acreditava que só na ignorância plena voltamos a ser humanos.

“O conhecimento é uma infecção grave que só é debelada pelo ódio”, me disse ainda. Eu não sabia o que fazer diante de tanta insensatez. Veio-me a vontade de fugir. Foi o que fiz. Cheguei em casa inquieto. Logo decidi abrir minha pequena edição dos fragmentos, de Heráclito, em busca de alguma resposta. É do veneno que deve vir a cura, dizem os homeopatas. Ao acaso, cheguei a uma frase certeira: “O surgimento já tende ao encobrimento”. Imitando o senhor Nakamura, resolvi usá-la como uma chave.

Para Benjamin Nakamura, o conhecimento existe só para encobrir a verdade, e por isso deve ser combatido. Exterminado, como uma praga, ou uma infecção bacteriana. Nesses casos, pensava o infeliz Nakamura, a burrice serve como um antibiótico. Ou como inseticida. A partir desses pensamentos estúpidos, que eram a negação do pensamento, ele chafurdou na infelicidade, mas acreditava que nunca fora tão feliz. Sentia-se aliviado – não precisava mais saber. Podia acreditar que a Terra é plana, ou que ela gira em torno da Lua, podia afirmar que as vacinas carregam chips chineses, ou micróbios de laboratório, pois enfim estava livre. Livre para a ignorância. A liberdade, para Benjamin Nakamura, era uma prisão, mas como ele entenderia isso?

Dois ou três meses depois, ainda aflito, resolvi visitá-lo novamente. Sua mulher me recebeu em lágrimas. “Está preso. Esfaqueou uma vizinha. Achava que a liberdade lhe dava o direito de matar.” Senti-me obrigado a visitá-lo na cadeia. Recebeu-me com uma frase assustadora: “Está tudo acabado, chegou a hora”. Logo teria que entregar sua alma ao Maldito, me disse. Não podia entender que, desde a leitura torta de Heráclito, já habitava o inferno.