Em um antigo caderno de notas, chego, por acaso, a uma advertência de Samuel Beckett, o irlandês: “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor”. A letra é minha, mas não me recordo do momento em que copiei as palavras de Beckett. Lembro apenas que, quando jovem, oprimido pela ideia da perfeição, eu não podia suportar meus pequenos fracassos. Eles se pareciam com uma condenação. Com a desgraça. Sei que, naquela época, a sentença de Beckett me soava falaciosa. Uma mentira poética para consolar os derrotados como eu.
O tempo me curou de minhas certezas. De minhas superstições de rapaz. Não é que eu tenha aprendido a suportar o fracasso, é bem mais que isso. Depois que entendi que só o fracasso nos empurra para a frente, passei a apreciá-lo e até – que estranho, que assustador – a desejá-lo. Passei a persegui-lo. Só com o fracasso se abrem as brechas através das quais o futuro se derrama. Só fracassando, eu entendi, se chega a ser.
A memória me empurra a um passado distante. Minha avó Iracema morava no subúrbio. Vizinha a sua casa, havia uma mercearia. Atrás do balcão de vendas, na parede encardida, o proprietário afixou uma placa. “Não vendo fiado. Não sustento fracassados.” Esse comerciante antiBeckett, o senhor Manoel, se julgava imune às desgraças. Sua caixa era um dique que o protegia da frustração. Os derrotados que se afastassem de seu caminho, só privava dos vitoriosos.
Enxotava os derrotados como cães sarnentos. “Não gosto de pessoas apodrecidas”, dizia, com sua voz asquerosa. Eu tremia. Quando um freguês atrasava o pagamento, ameaçava-o não só com a polícia, mas com as chamas do inferno. Sua fé se baseava na vingança. Sempre que minha avó me mandava à mercearia, eu já levava no bolso as moedas mil vezes contadas. Sabia que qualquer erro, por menor que fosse, seria minha ruína.
“Mercearia da Luz”, dizia a placa à entrada. O nome escolhido para a loja, que apontava para a transparência e para a perfeição, já anunciava o espírito inflexível do senhor Manoel. Inflexível e amargo. Avinagrado. Talvez azedo. Sempre que eu pisava seu chão, sentia náuseas. Tinha vontade de vomitar e de fugir. Hoje, sei que a perfeição é massacrante, destruidora. Ela solapa o humano. Danifica nosso espírito, que é feito não só de luz, mas de sombras.
Todas essas lembranças me voltam agora, envoltas pelas palavras fortes de Samuel Beckett. Desde muito cedo, tentei ler seus livros. Aos 13 anos, despreparado, já lutava para ler Murphy, romance que ele publicou ainda nos anos 1930. Uma névoa cinzenta cobria as páginas. Pareciam blindadas. Eu lutava, fracassava, continuava a lutar, fracassava de novo, seguia em frente. Sem perceber, na precariedade de minha adolescência, eu já encarnava algum Samuel Beckett.
Depois tentei ler Molloy, o romance de 1951 – mesmo ano em que eu nasci. Beckett nasceu em 1906 – mesmo ano em que meu pai nasceu. As coincidências se empilhavam, mas nada explicavam. Sempre aquela neblina, sempre o manto de trevas. Aquele invólucro. Não foi sem sofrimento que aprendi, aos poucos, que a neblina era a própria realidade. Tudo o que temos é essa turvação. Não existe contato direto com a verdade. A realidade é uma cortina que nunca se deixa abrir.
Se aceito isso agora, as palavras de Beckett sobre o fracasso passam a fazer sentido. O fracasso não é o fim, não é a derrota dos iludidos, é o começo. Só de posse do fracasso podemos nos erguer. Vinicius de Moraes, no célebre poema, fala dos “puros” – aqueles que só aceitam a retidão. Eles vivem do desejo de corrigir o mundo, mas nada mais encontram que um mundo que não se deixa dobrar.