A relação sem limites de dois irmãos no novo livro de Valter Hugo Mãe

Escritor Valter Hugo Mãe ancora seu novo romance, Deus na Escuridão, na relação fraternal entre dois irmãos na Ilha da Madeira

Depois de sua ficção deambular por países como Islândia, Japão e Brasil, Valter Hugo Mãe volta às águas de Portugal
Depois de sua ficção deambular por países como Islândia, Japão e Brasil, Valter Hugo Mãe volta às águas de Portugal

“Pouquinho nasceu sem as origens. Era inteirinho um menino, mas vinha mordido entre as pernas como se algum predador o tivesse buscado na barriga de nossa mãe”. Com estas frases concisas, o escritor luso Valter Hugo Mãe descortina Deus na escuridão (Biblioteca Azul, 240 páginas), seu romance mais recente. Lançado em fevereiro em Portugal, pela Porto Editora, o livro chegou ao Brasil em maio pelo selo da Globo Livros, com um projeto gráfico a realçar o contraste cromático e dois prefácios assinados pelo professor de Literatura Carlos Reis e pelo músico Rodrigo Amarante. A Biblioteca Azul é a casa brasileira de VHM, como ele é conhecido no país, desde 2016, após a editora Cosac Naify, que deslanchou o autor por aqui ao publicar O filho de mil homens em 2011, encerrar as atividades.

Deus na escuridão é o conto de dois irmãos, Paulinho e Serafim, que moram na Ilha da Madeira com os pais, Mariinha e Julinho dos Pardieiros, e se tornam conhecidos como Felicíssimo e Pouquinho, respectivamente. Felícissimo é uma alcunha inventada a partir da vasta alegria que toma conta do mais velho quando o caçula nasce… Ante a descoberta de que o bebê viera ao mundo sem a genitália, a ele é dado o epíteto de Pouquinho: “Ele tem corpo mas é um pouco depois do corpo”. Em três partes – O nascimento de Pouquinho, no verão de 1981; O evangelho segundo aqueles que sofrem, no ano de 2001; e Felicíssimo irmão, a única desprovida de datação, talvez a indicar, ali já ao término do livro, a atemporalidade de um vínculo fraternal - VHM delineia uma história que transcende as convenções ao se ancorar na vastidão de um amor sem medida e dedicação quase maternal.

Pelo olhar do narrador Felicíssimo, com sua mirada curiosa para a geografia que impõe aos moradores da Ilha da Madeira um cotidiano de movimentos ágeis e bruscos a driblar encostas, montanhas e arbustos, sempre com a imensidão oceânica à vista (“o mar pode com todos e ninguém pode com o mar”), a narrativa se estrutura a partir do acesso à devoção ilimitada com que ele trata o irmão. Se o nascimento de Pouquinho nada mais é do que um milagre, a presença daquela criança “abreviada”, como toda a população enuncia, amaina as dificuldades de um cotidiano árido e pobre e abençoa, como Felicíssimo se esmera em propalar, as vidas de todas as pessoas que com ele cruzam.

Acontece que, quando Pouquinho é elevado a uma santidade que os madeirenses abraçam com fervor, não tarda para que, mesmo sendo um adulto do qual ninguém ousaria esperar arroubos românticos, apareça uma mulher que por ele se encanta. No momento em que Rosinda surge como o interesse amoroso do jovem santo e incapaz de procriar, mas apto e disposto a amar – afinal, “namorar é uma coisa sem planos” – , o conflito se instaura no âmago do narrador: como permitir que uma mulher, qualquer mulher, desestabilize esta equação na qual ele e o caçula são um binônio exclusivo e de contínua retroalimentação?

Em determinado momento, ele mesmo ensaia uma resposta possível: “Eu deveria saber amar tanto que aceitasse a ausência”. Mas Felicíssimo é feito do mesmo amálgama que molda os personagens concebidos por Valter Hugo Mãe nestas duas décadas de produção literária: ele é complexo, sensível, contraditório, por vezes refém dos sentimentos, em outros aspectos afeito e ao mesmo tempo refratário às sensações que o amor traz, quaisquer que elas sejam ou por mais ambíguas que se revelem. Por fim, o narrador de Deus na escuridão falha em esconder o ódio que sente daquela intrusa que lhe surrupiará não apenas o objeto de devoção, mas a razão inteira de sua vida: “Só sentimentos podem, às vezes, ser transparentes”...  E como são. Porém, nada o impede de sacrificar suas crenças, sua cosmogonia insular e sua fé na família e na castidade/santidade do irmão quando este lhe faz um pedido incontornável.

Prolífico fabulador de uma prosa densa e poética, exímio observador das configurações afetivas (as concretas, as possíveis e as imaginárias) e um criador generoso com suas personagens, Valter Hugo Mãe gosta de inventar e radiografar afetos. Em todos os seus livros, amar e desamar nem sempre compõem uma antítese. Há muitas nuances nas relações que se imbricam em seus escritos, Deus na escuridão não é diferente. O curioso, aqui, é o regresso ao território português depois de sua ficção deambular por países como Islândia, Japão e Brasil - mas não uma volta a Lisboa ou ao interior de Portugal, e sim a opção pela Madeira, que termina por virar um personagem importante.

A Continente entrevistou o escritor para a edição número 160, que circulou em abril de 2014. À época, ele divulgava A desumanização, ambientado na gélida paisagem islandesa. Um comentário seu acerca daquela trama pode ser relido agora, à luz de Deus na escuridão, onde a natureza exerce soberania sobre Felicíssimo: “Essa história poderia ser mais ou menos contada acerca de outro país, mas nunca resultaria no mesmo livro. Ao mesmo tempo, há uma sensação da própria Islândia ser gente, do próprio lugar ser gente. E isso leva a uma construção que me interessou muito porque conduz a uma ideia complexa da solidão. Para nós, que talvez estejamos habituados a outros tipos de lugares ou outros tipos de paisagens, quando estamos no fim de uma montanha, podemos sentir que estamos absolutamente sós. Mas, efetivamente, aprendi que os islandeses dificilmente se sentem sós, porque espiritualizam a natureza. Sendo espiritual, a natureza é sempre uma companhia. Ouvi muito isso na Islândia, pressenti muito essa questão espiritual da natureza, como se ela tivesse uma forma de inteligência e tomasse decisões”.

Na Nota do autor que conclui o livro, ele explica: “Nos romances recentes, decidi perseguir uma segunda tetralogia, a que chamaria de Irmãos, ilhas e ausências, em que a companhia nem por isso conduz à superação da solidão”. O romance atual, pois, é enfeixado nessa urdidura que inclui A desumanização (2013), Homens imprudentemente poéticos (2015) e As doenças do Brasil (2021). Suas primeiras quatro obras – o nosso reino (2004), o remorso de baltazar serapião (2006), apocalipse dos trabalhadores (2008) e a máquina de fazer espanhois (2010) - pertencem à série a idade inteira (assim, com a grafia das iniciais em minúsculo); já O filho de mil homens (2011) e Contra mim (2020) formam o eixo A proximidade autobiográfica.

São dez livros escritos ao longo de duas décadas, numa notável frequência de um título por biênio, sem contar Contos de cães e maus lobos (2017) e obras ilustradas, como O paraíso são os outros (2018) e Serei sempre o teu abrigo (2020). Acompanhar esta travessia, percebendo que não há diluição em seu estilo, tampouco acomodação em fórmulas prontas, é um deleite. Rodrigo Amarante assim descreveu: “O Valter me ensinou muito nos seus livros e me abriu o coração tantas vezes, mas este é pra mim o mais sublime de todos, a sua maneira de fazer a nossa língua cantar a natureza humana com a leveza e precisão de como voa a borboleta dentro da floresta. Ele é aqui a voz do amor que somos nós todos”.

Em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa – um dos autores que VHM mais admira, conforme disse à Continente uma década atrás – fala sobre “o sentir forte da gente  – o que produz os ventos”. “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe”, divaga Riobaldo, o jagunço narrador, para sempre assombrado/acarinhado pela memória de quem era sua neblina - Diadorim.

Com Deus na escuridão, Valter Hugo Mãe renova a aposta no amor como força motriz e matriz essencial para todos nós – qualquer que seja sua roupagem, qualquer que seja sua expressão… O amor como uma epígrafe vital, abaixo da qual tecemos todas as narrativas. E segue sua investigação a respeito dos mistérios da existência, sempre se indagando, como se os questionamentos fossem sementes jogadas no fértil solo do presente, e, a partir de tais interrogações, sonhando o horizonte de mais afetuosos – e, por conseguinte, corajosos –   futuros possíveis. Afinal, como Felicíssimo vaticina: “Quem não pergunta, não avança”.

Luciana Veras é jornalista especializada em cultura.