Foto: Ana Reis/ Divulgação

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Uma das forças mais bonitas e potentes da literatura é quando uma obra, em toda sua originalidade, nos remete a outras lidas anteriormente, autores que já têm um lugar especial nas nossas estantes e memória, provocando relações entre personagens, versos, lugares e enredos distintos. Assim é com Mata Doce, romance de estreia da baiana Luciany Aparecida, recém-lançado pela Alfaguara. A centralidade da geografia e, ao mesmo tempo, a diluição das fronteiras do espaço-tempo, postas logo nas primeiras páginas, reforçam questões próprias da contemporaneidade que vimos, nos últimos anos, sendo discutidas em ótimas obras da ficção nacional: disputa pela terra, identidade, ancestralidade e reparação.

“O mapa do lugar é menor que o lugar/ Já o poema do lugar é do tamanho do lugar”, diz o mote poético impresso nas plaquetes que compõem a coleção mensal Círculo de Poemas (Fósforo e Luna Parque). E assim também é com Mata Doce.

O título do livro é o nome da cidade – fictícia, mas não tão inventada assim – onde moram Maria Teresa e suas mães, Mariinha e Tuninha. É também neste vilarejo rural do interior baiano onde vivem Mané da Gaita e sua inseparável cadela Chula, Lai, Venâncio, Zezito, Mãe Maximiliana dos Santos e tantos outros personagens elaborados por Luciany em todas suas complexidades. Cada um à sua maneira e todos juntos, na coletividade, falam sobre o Brasil de ontem e de hoje. Todos circulam pelo casarão das três mulheres, também ele um pouco personagem deste romance, que recebe quem por ali chega com seu imenso e belo roseiral

O encantamento das rosas brancas tão características da casa secular que é porto-seguro para os moradores de Mata Doce é quebrado quando Maria Teresa decide cortar todas as flores após uma tragédia que vai mudar sua vida para sempre, na véspera de seu casamento.

A narrativa não linear onde passado e presente se fundem é contada ora em terceira pessoa, ora pela própria protagonista, que decide rememorar sua vida já na velhice, anos após ter se rebatizado de Filinha Mata-Boi. Ao longo das 300 páginas do romance somos apresentados às histórias das pessoas que povoam Mata Doce e da disputa territorial que marca a cidade sob a autoridade e ganância do coronel Gerônimo Amâncio, não por acaso, único branco do vilarejo. As genealogias, rixas familiares e segredos guardados por décadas vão sendo desvelados entre as idas e vindas temporais.

É preciso estar atento aos nomes e às genealogias para não se perder em Mata Doce. Os caminhos são muitos e é fácil desorientar-se e esquecer a trilha que leva ao casarão. Para seguir firme no caminho basta se atentar a tudo que está sendo contado por Luciany e Filinha. Afinal, o mapa de Mata Doce é menor que o próprio lugar. Já o romance e todas as histórias nele partilhadas são exatamente do tamanho que ele sempre teve, mesmo que nunca tenha sido reconhecido.

Valentine Herold é jornalista, mestre em Sociologia e editora assistente da revista Pernambuco.