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Apresentando trechos de seu prontuário médico, Paul B. Preciado inicia Dysphoria mundi: o som do mundo desmoronando provocando uma torção em sua “doença mental”, a disforia de gênero. Se os protocolos médicos atestam que o autor vive em uma condição intransponível – uma vez que mente e corpo, em seu caso, assumem posições conflitantes, sendo o primeiro masculino e, o segundo, feminino –, é com ela que o autor trabalha, apresentando um outro paradigma epistêmico e político: a Dysphoria mundi. O livro, publicado originalmente em 2022 pela editora espanhola Anagrama, e que acaba de chegar ao Brasil pela Zahar, parte da seguinte questão central: investigar, a partir de uma perspectiva autobiográfica, as formas de resistência de uma parte dos corpos vivos tratados como disfóricos (loucos, estranhos, monstruoso, que habitam as encruzilhadas dos dispositivos inscricionais médicos, jurídicos e administrativos). Preciado faz uso de sua voz e corpo trans, e articula as vestes de filósofo, ativista, curador e diretor de cinema para ressignificar a noção de disforia, transformando-a em um operador epistemológico que fissura as taxinomias vigentes. Com essa investida, dá continuidade a trabalhos como Testo Junkie (2023) e Manifesto contrassexual (2022), que o tornaram um dos principais expoentes da teoria queer e dos estudos de gênero da atualidade.

A condição de disforia ganha corpo na obra, sendo alargada não somente pela somateca construída pelo autor – conjunto de corpos considerados dissidentes: racializados, colonizados, imigrantes, deficientes, interseccionais etc. –, mas também pela condição ontológica que eles ganham, transformando-os em entes instáveis, “elásticos e mutantes que permeiam todos as outras sintomatologias, fazendo da doença mental um arquipélago disfórico”. Corpos disformes que se soltam de uma grande massa normativa e que flutuam, agenciando práticas experimentais que permitem modificar o curso das águas por onde passeiam. A ilustração de um fragmento que se descola de uma grande massa é uma produtiva metáfora do que propõe Preciado, por tratar-se de corpos pesados (o prefixo grego dys, indica dificuldade e o adjetivo phoros, deriva do verbo pherein, que remete a transportar, suportar, transferir) que se carregam custosamente ou mesmo que têm dificuldade em suportar-se no curso da correnteza – ao desgarrarem-se caem, produzem vibrações, desenhando redemoinhos de larga ou de baixa amplitude a depender da força de colisão. 

Essas partes fragmentárias ganham materialidade no livro não só pelo conjunto de capítulos que faz dele “um arquivo disfórico, que não obedece a um curso central, de modo que eles podem ser combinados e recombinados de muitas maneiras”, mas também pela escrita da obra, que se movimenta rapidamente entre o ensaio, crônica, poesia, crítica literária, canto lírico, oração fúnebre, registro deliberadamente ambíguo que, ao utilizar-se de muitos recursos, desidentifica-se. O livro é, enfim, uma recusa do corpo protocolado pelas condicionantes do DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), responsável por categorizar a “disforia de gênero” como doença mental em 2013. 

É a partir desse significante nosológico que Preciado observa um porvir epistemológico-político, protagonizado por corpos que não se reconhecem em tais clivagens médicas. Corpos à deriva, ou simbiontes que, de acordo com o autor, serão responsáveis por produzir uma nova configuração nas relações entre poder, saber e vida – produção particularmente urgente diante do cataclismo climático, da proliferação de vírus como o da COVID-19 e da nova onda autoritária ilustrada pelo quarteto Trump/Putin/Erdogan/Bolsonaro. O nosso presente, o presente dos corpos das minorias oprimidas, o presente dos povos outrora colonizados, o presente dos corpos aos quais o gênero feminino foi atribuído ao nascer, dos corpos racializados, o presente dos povos indígenas, dos pobres trabalhadores, dos corpos considerados anormais, sexualmente desviantes (...) sempre foi estranho, e o nosso futuro nunca foi outra coisa se não uma série de perguntas sem resposta. A diferença agora é que a nossa condição de precariedade e expropriação (...) se generalizou. Não somos simples testemunhas do que acontece. Somos os corpos por onde a mutação vem para ficar”, escreve o autor.

A imagem que serve de ilustração dessa virada é o incêndio na Catedral de Notre Dame em abril de 2019, que Preciado observou da janela de seu apartamento em Paris. As chamas que tomaram a catedral anunciariam as ruínas de um modelo que tem o seu início, segundo o autor, no século XVI, com a expansão do capitalismo colonial e das epistemologias racionalistas, patriarcais e sexuais. O autor o denominará Petrosexorracial, uma infraestrutura epistêmica que tem como base a combustão de energias fósseis e as tecnologias de governo, que atuam classificando os seres vivos a partir de taxonomias científicas, tais como espécie, raça, sexo e sexualidade. Categorias que serviram para legitimar não apenas a destruição do ecossistema, mas também para impor o corpo branco, masculino e heterossexual como norma. Assim, a combustão de Notre Dame um monumento representativo de um modelo intelectual, econômico e político ocidental representaria o início de um movimento de deterioração deste modelo epistemológico. A chama densa e escura, reminiscente dos processos de carbonização vivenciados nas destruições de biomas e nas guerras transformou parte das pedras da catedral mais antiga de Paris em pó, anunciando, por meio dos diversos canais de televisão e de streaming que transmitiram ao vivo a sua destruição, um processo de corrosão. A este acontecimento, Preciado dedica uma Oração Fúnebre: “Nuestra Señora de las Ruinas, ruega por nosotros (…) Nuestra Señora del Abuso Sexual, ruega por nosotros. (…) Nuestra Señora de la Colonizacíon, ruega por nosotros. (...) Nuestra Señora de lo Extractivismo, ruega por nosotros”. 

A nuvem tóxica não cessou de se proliferar em outras roupagens. Em 2020, a pandemia de SARS-CoV 2 – COVID 19 – ratificou a torção no eixo Petrosexorracial e escancarou uma frágil gestão biopolítica, repetindo o fracasso vivenciado muitos anos antes com a disseminação da AIDS. Necropolítica e biopolítica materializadas nas contagens dos números de mortos e nos contos de superação dos indivíduos que sobreviviam ao vírus, após longos períodos de internação: “talvez 2020 tenha começado em 15 de abril de 2019, dia do incêndio de Notre Dame: o fogo teria sido o sinal anunciador do caos, como se Notre Dame fosse a abertura de um show cujo astro seria o vírus da COVID-19”.

Dessas questões apresentadas ao longo dos quatro primeiros capítulos do livro, Preciado segue por uma análise plural protagonizada pelo capítulo homônimo à obra. A expressão “Time is out of joint, que figura na peça Hamlet, de Shakespeare, servirá de guia desta seção. Preciado a apresenta sob as lentes da “temporalidade espectral” de Jacques Derrida, que diz respeito a um tempo presente entre o passado e as condições de possibilidade de um porvir, um entre-espaço que habita ao mesmo tempo dois lugares do saber. Assim, time is out of joint significa um tempo que que perdeu o rumo, o curso de uma engrenagem anterior – tempo de deslocamento que pode servir de motor para a formulação de estratégias ético-políticas de um presente sem eixo. Time is out of joint é a condição da Dysphoria mundi, uma aporia irreversível que produz um presente contraditório, precário e inflamado. Nesse espaço, o corpo como organismo biológico perde o protagonismo para o corpo monstruoso, ficção tecnossomática que “autoriza-se a realizar práticas de depredação universal, levando a “uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energias fósseis para outra de energias simbióticas”. 

No sexto e último capítulo, Mutação intencional e rebelião somatopolítica, o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiro de Castro, é adicionado à conversa, servindo de referência para Preciado elaborar acerca dos rituais de “parar o mundo”. Isso implica constituir-se com o outro, colocando-se a serviço da produção, entre outras coisas, de novos significantes que não passam por aqueles que representam a base do regime Petrosexorracial (Deus, nação, o nome do pai, capital, sujeito, identidade, código, protocolo). Em suas páginas finais, Preciado presta uma homenagem a diversos simbiontes que nos últimos anos produziram fissuras neste tempo em pausa: George Floyd, Jamal Sutherland, Kevin Desir, Randy Miller…. Dysphoria mundi é enfim sobre esses corpos disfóricos, dissidentes e protéticos que escutam o som do mundo desmoronando, e que num entre-espaço sem garantias, operam transformações.