Capa prateleira

A cura de Annie Ernaux pela escrita
Por Valentine Herold

Para Annie Ernaux a resposta para elaborar seus traumas, anseios e desejos sempre foi a escrita. Assim ela fez - com muita coragem - ao falar sobre seu aborto clandestino em O acontecimento (2000), a relação com seu pai em O lugar (1983) e um episódio de violência doméstica que a marcou profundamente em A vergonha (1997). Agora chega ao Brasil A outra filha, livro editado como todos os outros da autora francesa pela Fósforo. Neste novo relato autobiográfico, ela mergulha em um exercício imaginativo ao escrever uma carta para a irmã morta que nunca conheceu.

Como tantas outras questões na vida de Annie Ernaux, esta perda também se deu de forma nada convencional. Aos dez anos, no verão de 1950, ela ouve a mãe conversando com uma vizinha sobre essa outra filha. “Ela”, como a escritora se refere à figura materna, revela que, além de nunca ter contado à menina sobre a irmã, a mesma “era mais boazinha do que aquela ali”. Como processar um luto por alguém que nunca se conheceu? Cabem mesmo comparações entre as duas? Que vínculo de irmandade é possível tecer a partir desta revelação proibida? É através da escrita que ela faz essa irmã renascer, tenta responder às tantas perguntas que a assolam e viver essa presença na ausência. 

Terror e fantasia à la latino-americana
Por Laura Morgado

Impetuoso e por vezes visceral, o primeiro livro de contos da escritora argentina Mariana Enriquez, Os perigos de fumar na cama , toma para si o horror humano e sobrenatural para criar narrativas de terror e fantasia propriamente latinas. Traduzido para o português por Eliza Menezes e publicado pela editora Intrínseca, a obra reúne doze histórias que abraçam o repugnante, o asco e a indecência de maneira coesa através de uma escrita clara e sem floreios. A coletânea foi originalmente publicada na Argentina quase quinze anos atrás, porém segue atual com o tom visceral de narrar vidas marcadas pela dor, medo e receio, assim como pela maldade, desgosto, inveja.

O desenterro de Anjinha é o conto que abre o livro de forma a antecipar a atmosfera que se repete durante toda a leitura, quase como uma canção típica de filmes do gênero thriller tocando no fundo da própria cabeça à medida que cada frase se desenrola. A protagonista da primeira história não necessita de nome, idade ou uma grande explicação sobre seu passado ou futuro, precisa apenas da narração em primeira pessoa diante do macabro encontro com um bebê morto-vivo, a irmã de sua avó que morrerá ainda muito nova e tivera seus ossos enterrados no quintal. “A casa foi vendida, eu fui morar sozinha sem marido nem filhos, meu pai ficou com um apartamento em Balvanera, e me esqueci da Anjinha. Até que ela apareceu ao lado da cama, no meu apartamento, dez anos depois, chorando, numa noite de tempestade”, escreve Mariana no conto.

Seguindo adiante, as histórias de Enriquez falam sobre um grupo de amigas que invejam uma garota mais velha e estão dispostas a muito para saírem por cima, uma família que vive os desesperos de uma “maldição” feita por um morador de rua, uma garota cuja vida é entrecortada pelo medo absoluto, um fedor misterioso que atinge a cidade de Buenos Aires. Um mirante na torre em um hotel antigo, uma mulher que possui fetiche em homens com doenças cardíacas e pulmonares, a morte de ídolo teen e suas consequências macabras para duas de suas fãs, um homem cujo trabalho consiste em filmar “coisas estranhas” e outro onde uma mulher atua no arquivo de crianças perdidas.

A décima primeira história é a que dá nome ao livro: Os perigos de fumar na cama explora a mente da protagonista Paula após uma senhora de seu edifício falecer. Sempre despojada, a escrita de Enriquez se destaca aqui pela delicadeza de narrar o que é subjetivo. Suas palavras são bonitas, afáveis e capazes de demonstrar a sua extensão como escritora, permitindo ao leitor que se perdure pelas páginas com vagarase, que leia e releia a fim de encontrar suas próprias respostas diante do texto de Mariana. Comum a todos os contos, a presença feminina em papéis de destaque é uma das características da obra e anuncia uma nova forma de fazer literatura latino-americana de terror –— que sempre foi majoritariamente masculina. A escritora não mede seus temas pela linha da moral e muito menos do tradicional, entregando assim um livro que causa feroz incômodo, da melhor forma possível.

Um luto marcado pelo silêncio
Por Luis E. Jordán

O luto é um processo complexo. Talvez pela própria palavra ser somente uma abstração, um aglomerado genérico das experiências particulares mais ou menos comuns que cada pessoa tem com a morte de um ente próximo. Dias de fazer silêncio, de Camila Maccari, trata do luto, mas aquele que é antecipado. Uma família se vê frente à morte inevitável do caçula, Rui, que tem uma doença terminal. A perspectiva (e o isolamento) da sua irmã Maria é a que se impõe na narrativa. A menina de 12 anos precisa lidar com um turbilhão de sentimentos conflitantes, sem muita ajuda. Justo ela que “sentia nojo da mãe (...) odiava a mãe por fazê-la sentir nojo (...) e sentir culpa depois porque o nojo da mãe foi a primeira culpa.” Entre ódio, culpa, revolta e amor, um caos interno se estabelece.

Uma das coisas mais interessantes nos livros que trazem personagens infantis é a ausência de conceitos presos a palavras — exemplo maior é Retrato de um artista quando jovem, de James Joyce. O método pode libertar a narração. Em toda sua incapacidade — muito natural de criança — de noemar certas coisas, Maria precisa refletí-las sem rótulos prontos, sem as abstrações genéricas universalizantes. Para ela pode ser um tormento injusto; para o leitor, uma chance de retornar a perguntas para as quais já pensava ter respostas.

Machado de Assis de A a Z
Por Mário Hélio

A edição de dicionários de escritores é algo que ainda se faz muito pouco no Brasil. Tantos são os cursos de Letras e de pós-graduação nessa área e as facilidades da pesquisa hoje em dia pelos meios eletrônicos que chega a surpreender não sejam tão frequentes e até comuns os largos trabalhos de fôlego assim. No sentido amplo e ao mesmo tempo específico do cuidado com a pesquisa, a preservação da memória e a difusão do conhecimento notável foi o que passou a ser feito a partir de 1982 pelo Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro. Um exemplo concreto do seu trabalho é o Dicionário Biobibliográfico.

Mesmo sendo ele voltado para autores de filosofia, pensamento político, sociologia e antropologia, merece o louvor num país cujas realizações desse tipo costumam ser escassas e esporádicas. O esforço de Antonio Paim (1927-2021) para a concretização do projeto, na Bahia – onde nasceu o Centro, a partir da sua coleção pessoal – e a efetivação da impressão do Dicionário pela Editora do Senado são dignos de nota. Iniciativas semelhantes poderiam nortear a organização dos mais variados dicionários e enciclopédias de escritores, não apenas os de literatura. Não somente as costumeiras compilações de artigos em livros e revistas acadêmicas. Dicionários e mais dicionários. Coletivos o modelo mais óbvio, e os de um só autor.

Por essas e outras razões – sobretudo, as intrínsecas, de qualidade – deve-se celebrar a segunda edição (revista e ampliada) do Dicionário de Machado de Assis, a cargo de Ubiratan Machado. Uma coedição da Academia Brasileira de Letras, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e a Imprensa Nacional de Portugal. “O ideal seria que este livro substituísse todas as biografias e bibliografias de Machado e Assis. Não chega a tanto, mas oferece, em forma de verbetes, o essencial do conhecimento atual sobre o escritor”, diz Ubiratan Machado, no texto Portal de recepção, que serve como uma breve introdução aos verbetes, que vão de A - tal qual “assinatura utilizada em diversas épocas” (por Machado de Assis, obviamente) - a Z.Z.Z, como “iniciais utilizadas na assinatura do conto Um bilhete, em A Estação. A atribuição é de R. Magalhães Júnior.”

O livro possui quase 600 páginas e é muito bem cuidado editorialmente. Desde o corpus em si às ilustrações e até os anexos, que trazem alguns textos de e sobre o “Bruxo de Cosme Velho”, e a reprodução de algumas capas de edições das suas obras no estrangeiro. Longe de ser árida essa leitura, como poderia alguém pensar, tratando-se de um dicionário. Pelo contrário. Pode-se até percorrê-lo com o prazer de uma crônica. Há revelações saborosas, como as sobre Castro Alves.

Embora costume ser referida na história da literatura a recepção consagradora de Machado de Assis, a verdade é que os elogios foram “de fachada”, para agradar José de Alencar. A opinião sincera? Esta, ao ver no poeta baiano “certa pompa, às vezes excessiva, certo entumecimento de ideia e de frase, um grande arrojo de metáforas, coisas todas que nunca jamais poderiam constituir virtudes de uma escola”.

Sobre importar distopias
Por Luis E. Jordán

O politicamente correto está indo longe demais? A pergunta permeia as histórias de A marcação, da islandesa Fríða Ísberg. A narrativa tem várias personagens narradas separadamente, mas que vivem num mesmo local, um futuro distópico e próximo, dividido socialmente entre marcados e não-marcados. Estes se recusaram a fazer um teste que, segundo seus defensores, consegue medir com precisão a capacidade de empatia. Dentro de uma escala, aqueles que não passam do valor mínimo são menos cidadãos, não possuem os mesmos direitos — mas podem, em tese, mudar de categoria. A história se ramifica em questões filosóficas interessantes.

Uma delas aparece no contexto brasileiro: até que ponto os debates (válidos e importantes) concebidos em países mais desenvolvidos podem ou devem ser importados para cá? Não se trata de diminuir o valor do livro, pelo contrário, é o próprio exercício literário de Ísberg, aliado à realidade daqui, que dá margem para esse tipo de reflexão. Como encaixar uma discussão sobre “empatia demais” num país sem amplo acesso a saneamento básico e moradia? Deste lugar, quem sabe o avanço da obsessão global por empatia seja menos uma distopia e mais uma aparição fantasmagórica que assola casarões.

Uma antologia lusófona da ecopoesia
Por Mário Hélio

Poesia ecológica. Um assunto tão antigo quanto a própria natureza e a cultura, mas só muito recentemente valorizado tal o relevo que assumiram as questões de preservação do meio ambiente. É isto o que traz O livro do verso vivo , uma antologia lusófona de ecopoesia. Organizada por Maurício Vieira e Thássio Ferreira, a obra reúne 46 poetas, e vale a pena tanto pelos poemas quanto pelos textos introdutórios em prosa, assinados por Patrícia Vieira (da Universidade de Coimbra) e Mauricio Vieira.

Como na construção de uma casa, a poesia se faz de elementos estruturais e decorativos. Essa antologia constrói-se em bases sólidas, colunas firmes. Não se trata da poesia como “sorriso da sociedade”, mas “oficina e denúncia”. Um saudável e nada sectário ativismo parece nutri-la. “De dentro do freezer do mercado transborda o sangue que,/ não sei, senhores, se vocês percebem,/ há também/ ou nas suas veias/ ou nas suas mãos”, diz Maria Giulia Pinheiro (aliás, sobrenome tão ecológico quanto a antologia onde está).