FernandaCaleffi Divulgação

Escreve Umberto Eco no seu livro A vertigem das listas: “Observa-se com frequência que as listas podem dizer respeito a uma infinidade de propriedades atribuíveis ao mesmo objeto”. Mas e se o objeto é o vazio? O abandono? Izinha, a narradora de 1+1=2 / 2-1=0 lança mão da máscara da memória — e da fabulação — para contar sua história.

O livro de Fernanda Caleffi Barbetta foi o vencedor do VII Prêmio Cepe Nacional de Literatura na categoria Romance e traz, em sua estrutura, uma lista de definições, lembranças, enumerações da protagonista a pedido de uma psicóloga enquanto se aproxima dos 15 anos (“Se você conta as coisas que aconteceram na sua vida, elas passam a fazer sentido”). A anomalia do título apenas com números fisga o leitor de imediato com um “O que é isso?”. O mesmo leitor abre o volume e, entre listas, encontra a história de uma menina e sua mãe (“A minha história é uma história de abandonos”). Essa última, com um jogo de caça-palavras na mão, chega a dizer à filha: “Achei, Izinha, nenhuma palavra me escapa”. A morte da mãe é a morte do sentido, das palavras.

Barbetta conduz o romance com segurança, conectando definições de verbetes de dicionários e imaginando novas definições (“Des.co.brir (nove letras): / 1- achar o ignorado, o desconhecido ou o oculto; / 2- fazer um descobrimento; / 3- chegar a conhecer; / 4- notar; / 5- destapar; / 6- mostrar; / 7- manifestar; revelar; / 8- avistar; ver; alcançar com a vista. // 9- saber de alguma coisa tarde demais.”), principalmente da ideia de abandono. Izinha, depois da morte da mãe, vai morar com uma tia-que-não-é-tia. Maltratada, acaba em um orfanato. Lá, conhece outras meninas, faz alianças e conhece outras variações da maldade. O jogo de substituições e vazios continua. Depois de uma apresentação de canto ela é escolhida, em detrimento da única amiga, para ser adotada por um casal que perdeu a filha da mesma idade. A cena se passa depois de uma apresentação de Izinha em uma noite de São João, mas é uma canção de Natal que ela entoa e convence da adoção. Mais uma vez o jogo de perdas e substituições aparece para o leitor mais atento. O vazio da perda do casal pode ser anulado, como uma conta mal feita, por alguém que também perdeu sua família? E o que poderia ser o começo de uma história feliz revela-se ainda pior.

Descrever o enredo de abandonos do livro é abandoná-lo um pouco. O que confere interesse à obra é justamente o como é escrito. Como em W ou a memória da infância, livro do autor francês Georges Perec, a narrativa se desenvolve a partir de um “buraco”. A linguagem é simples, quase sempre emulando a associação típica das crianças e adolescentes. No livro Léxico familiar, a escritora italiana Natalia Ginzburg descobre que os poemas podem “ser feitos de nada, feito das coisas que se olhavam”. E é assim que Fernanda Caleffi Barbetta também tece seu livro premiado. Os infortúnios de Izinha, ou melhor, Luiza Martins Couto são menores, para o leitor, do que o amor genuíno às palavras e às pessoas da autora. A atenção, também, à fissura dessa mesma linguagem e sua incapacidade de substituir o que nos é mais caro: o amor, as lembranças mais importantes, o carinho.

Ao encaminhar-se para o seu fim (ou aos seus fins), o romance vai revelando, aos poucos, a opacidade da memória e a força da imaginação. Não é por acaso que a personagem encontra no teatro uma alegria, uma descoberta. Refiro-me aos fins no plural porque a autora nos apresenta fundos falsos. Narrativas que são retomadas, como é a vida, depois das tragédias, dos abandonos.

O recurso do caderno onde sobreviventes escrevem o que viveram chega a lembrar Um caderno e tanto, livro da escritora húngara Agota Kristof. Neste, gêmeos são criados por uma avó infernal e desenvolvem uma violência digna de filme de Peter Haneke (diretor Violência gratuita, A fita branca, Caché, entre outras obras). A linguagem se torna áspera como a sobrevivência dos irmãos, tal qual as relações humanas naquele mundo (que o leitor logo percebe se tratar da Segunda Guerra Mundial, mas isso nunca é dito).

A narração sai do passado mais remoto e volta para a Luiza de 15 anos conversando com a psicóloga, doutora. Camila. Lemos o diálogo:

Nossa conversa foi mais ou menos assim:

Li tudo, Luiza.

Que ótimo.

Achei bastante interessante essa sua forma de contar, contando mesmo, como se fossem números.

Mas são números.

Sim, sim, muitos números.

Ela folheava aquela agenda preta onde fazia as anotações de

nossas conversas, como se procurasse algum trecho específico, mas na verdade ela procurava as palavras para dizer o que

tinha achado.

Achei bem, bem criativo.

Obrigada.

Você tem uma memória boa, se lembra de muitas coisas

em detalhes.

A senhora acha que inventei todas essas coisas?”

Outro recurso usado pela autora é o de riscar palavras, ressaltando assim a substituição e o abandono, leitmotiv do livro e que ajuda o leitor a lembrar que está diante de cadernos.

Como realmente foi a festança íntima”.

Cabe também lembrar que há muitos mais. Há repetições de palavras já escritas em parênteses, como se nada mais pudesse ser desenvolvido ou explicado, como se elas não funcionassem mais em um mundo de dor e violência. Além das palavras, os números têm grande importância. A autora parece nos avisar que a lógica deles pode ser bastante traiçoeira. Mas, para o leitor, o efeito é de indagação e descoberta. O leitor atento perceberá que mesmo a enumeração pula e se embaralha, como se ajudasse a contar a história que se vê adiante.

Termino a resenha copiando as palavras de Alejandro Zambra sobre o romance já citado de Natalia Ginzburg para referir-me a 2+2=1 2-1=0: “Há livros que provocam em seus leitores o desejo de escrever, e outros que antes bloqueiam esse desejo. Léxico familiar pertence, sem dúvida, ao primeiro grupo. É impossível lê-lo sem imaginar este outro livro próprio que ainda não existe, mas que deveríamos, por pura gratidão, escrever”.