Lope de Vega, pai do teatro espanhol, escreveu que o demônio era o rei do Ocidente e que o envio de Colombo às Américas seria a renovação de sua posse sobre aquele território. Já Joseph Conrad, em Nostromo, sentencia: “A América é ingovernável!”. Gregório de Matos por sua vez, arremessando contra a arrogância e avareza dos governantes, acusou: “Que falta nesta cidade? ... Verdade./ Que mais por sua desonra? ... Honra./ Falta mais que se lhe ponha? ... Vergonha”.
Toda escritora ou escritor que se proponha a escrever sobre os flagelos que golpeiam a humanidade parte de um ponto, de um porto conhecido ou inventa algum para si, para que se lhe firmem os pés e mão com a qual escreve. Se para Lope de Vega foi em algum momento a imagem demoníaca e para Conrad, a turbulência ligada a paisagens não-binárias, qual será para os escritores brasileiros que estão aqui, em neste maio de 2016, o ponto inicial para escrever sobre os acontecimentos políticos que, estremecendo o país nos últimos meses, numa reviravolta digna de seriados de TV levantou protagonistas e antagonistas de narrativas que se julgavam concluídas?
O cenário reaproveitado surge numa trama inverossímil: 52 anos depois de um golpe militar que depôs um presidente democraticamente eleito e que instaurou uma ditadura truculenta apoiada por setores conservadores da sociedade, num processo manobrado pela junção de um Congresso e um Senado criminosos e de um Judiciário conivente e permissivo, se inicia novamente a deposição de uma presidente também democraticamente eleita, sobre a qual não pesa qualquer acusação de crime. A paisagem então é tomada por personagens saídos de fins dos anos 1930, 1940, 1950, 1960 e até antes: mulheres recatadas e do lar cujo papel é ditado e editado pelos meios de comunicação e pelos homens que são seus guardiões, caçadores de comunistas, velhos combatentes com sangue nos olhos a exigir o direito de violação, tortura e morte daqueles que se opõem ao seu ideário, os neutros que seguem a onda em seu silêncio omisso. Nas falas dos personagens mais exaltados, o pedido claro pelo retrocesso: “Estamos em 1866, por que os negros, os pobres, as mulheres, as crianças devem ter direitos garantidos?”, ou “O voto de curral sempre foi uma das instituições mais sólidas da República Velha”, ou ainda, “Estamos marchando com Deus, pela Tradição, Família e Propriedade”. O léxico por sua vez, é retomado por palavras que andavam engavetadas: Golpe, Ditadura, Resistência, Exceção, Passeata, Manifestação.
Ora, isso parece um exagero digno de roteiristas ensandecidos pela teoria do apocalipse zumbi. Especialmente quando esses personagens, suas demandas e exigências se chocam com aqueles que desde o processo de redemocratização do país, em 1984, foram conquistando espaços e garantias, ainda que pequenas, de serem ouvidos, levados em conta, dentro de uma sociedade extremamente desigual. Pessoas que por sua condição de classe ou cor ou gênero não teriam direito a frequentar a universidade, por exemplo, ou pessoas que por conta da vivência de sua sexualidade têm procurado garantir visibilidade e conquistas impensáveis décadas atrás, ou ainda estudantes que desejam estudar numa escola em que a merenda não seja desviada por sujeitos corruptos em posição de poder.
Assim, com esse cenário, sob o flagelo dessa paisagem, como escrever 2016? Por que será inevitável, não? Será necessário refletir com honestidade sobre fatos tão inauditos quanto terríveis. Haverá, é claro, entre a turba monstruosa, quem escreva a história oficial. Mas esses não interessam aqui senão pelo seu papel perverso de marionetes. Sobre esses, Sophia de Mello Breyner Andresen alerta:
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
Interessa aqui quem não se encolhe, quem diante dessa proliferação de complexidades conseguirá escrever não esse momento, mas todos os momentos que coexistem dentro dele, toda essa dessemelhança e vertigem, toda a “arribada de confluências”, para usar uma expressão de Lezama Lima, que desdobram tempos, personagens, eventos diferentes ao mesmo tempo aqui e agora. Precisaremos ainda nos apoiar sobre o real maravilhoso, aquele que surge da absurda alteração da realidade, ou criaremos, de fato, uma nova base que nos sustente a partir do charco? Escolheremos escrever essa história como tragédia ou farsa? Ou ambas não mais se excluem?
São questões em aberto. Mas não podem permanecer assim por muito tempo, pois já batem a nossa porta, talvez seja a polícia, talvez seja o futuro.