Esqueça o esquadrão de formalidades e os quilos de recomendações de “imperdível” e de “se não conhecer, morre”, que lhe cercam toda vez que você escolhe assumir a “nacionalidade” de turista por alguns dias. O melhor de uma viagem é justamente a inclinação do momento. Munido dessa inquietação, decidi por um destino insólito, durante uma curta temporada na Inglaterra. No dia 14 de fevereiro, encarei quase duas horas num ônibus entre Londres e Winchester para visitar um túmulo. Explico melhor: o túmulo de Jane Austen, na data gringa em que é comemorado o Dia dos Namorados.
É irresistível o clichê acadêmico de que Jane Austen foi uma das criadoras do que hoje entendemos por século 19. Mas, sejamos sinceros, não é bem isso o que atrai a legião de fãs — sempre renovável — dessa mulher que morreu com pouco mais de 40 anos e que decidiu não se envolver com os inúmeros pretendentes que passaram pelo seu caminho — e olha que no começo de Orgulho e preconceito ela nos avisa que casar bem uma filha é missão primordial de qualquer família que se preza, num parágrafo armado até os dentes da mais afiada ironia.
Ela é constantemente relida, adaptada para o cinema e revista até em livros nos quais seus personagens se misturam a zumbis e a assassinos seriais. Mas tudo isso por uma razão bem pouco “historicista” ou coisa que o valha. Teve uma vez, por exemplo, que precisei entrevistar um clube de leitoras de Jane Austen. Um grupo de mulheres entre 20 e 40 e poucos anos. Lembro que cada uma delas listava detalhes das obras com um preciosismo arrasador.
Mas lembro sobretudo de uma senhora de óculos que falou algo do tipo “Lendo Jane fica mais fácil entender isso aqui”. “Mas isso aqui o quê?”, recordo que indaguei. “Isso aqui”, ela me respondeu, fazendo um gesto vago com os dois braços no ar. Não poderia haver definição melhor do efeito de um grande escritor num leitor.
A verdade é que a senhorita Austen nos ajudou a compreender o complicado das equações amorosas, território onde os envolvidos precisam suportar uma balança nem sempre favorável de perdas & ganhos. E vamos ser realistas: há momentos em que é difícil entender o que é a perda ou o que diabos são os ganhos quando duas pessoas decidem/precisam se envolver. Se Shakespeare nos colocou a questão chave do Ocidente, o bendito “ser ou não ser”; Jane foi mais incisiva: sendo ou não sendo, você vai se apaixonar, então esteja preparado.
Acredito que tenha sido isso o que me levou a encontrar, nas revistas inglesas, um turbilhão de matérias sobre os 200 anos de Orgulho e preconceito, comemorados no último janeiro, que batiam numa só tecla: o protagonista Mr. Darcy seria mesmo o partido ideal para a irrequieta Elizabeth? É claro que as respostas eram tão vagas, ou furiosas, quanto aquelas envolvendo a suposta traição de Capitu. Calvino, onde quer que ele esteja, deve concordar comigo (e assim eu espero, amém!): a persistência de uma dúvida é um dos elementos que fazem um livro continuar a ser lido e relido. Ou seja: um clássico. Ainda assim, senti a necessidade de ir além.
Movido pelas imortais intrigas entre Mr. Darcy e Elizabeth, resolvi questionar uma série de especialistas em relação ao ethos a forrar o corpo e a alma daquilo que entendemos por clássico. Por que certos textos insistem em nos atazanar a vida inteira propondo, se não respostas, mais e melhores perguntas? “Um clássico tem um bem simbólico que integra um determinado cânone, ou seja, é ‘clássico’ por motivos não apenas estéticos, mas políticos e econômicos”, destacou a escritora e crítica literária Elvira Vigna, numa síntese exemplar, como é do seu costume. Igualmente sintética, a escritora Luzilá Gonçalves Ferreira encontrou sua definição de clássico nas palavras de Leo Spitzer: “Nos clássicos encontramos a produção vertiginosa de um irreal a partir de elementos do real, um ‘irreal’ no qual encontramos ‘o brilho da vida’.”
Orgulho e preconceito ganhou nova edição, há pouco, pelo selo Penguin, da Companhia das Letras, especializado justamente em trazer de volta às livrarias aquelas obras que algum dia mereceram o rótulo de “clássico”, seja por questões estéticas, políticas ou econômicas. Leandro Samartz comentou o critério que move o catálogo brasileiro da Penguin, coordenado por ele: “Um clássico é um livro que resistiu ao teste do tempo, das modas literárias e que — mais importante — tem a dizer a cada nova leitura. E isso através das décadas e dos séculos. No caso da Penguin/Companhia, escolhemos títulos clássicos que merecem uma nova roupagem com ainda mais qualidade: e isso se dá em aspectos como tradução (no caso dos estrangeiros) e estabelecimento de texto (no caso dos títulos brasileiros), prefácios a cargo de alguns dos maiores especialistas em cada livro, projeto gráfico atraente etc.”.
A Penguin/Companhia publicou, também há pouco, nova edição de Senhora, de José de Alencar, autor que, apesar de ocupar um lugar canônico na literatura brasileira, é um nome cujos livros costumam assustar as novas gerações de leitores, seja por uma construção de enredo “empacada”; seja por longas descrições que chegam a dar nos nervos (nos meus, por exemplo).
Qual seria o problema do escritor cearense ou mesmo haveria um problema real no homem que ajudou a erguer o romantismo brasileiro? Ou pior: o problema seria, talvez, nós, seus leitores. O escritor Raimundo Carrero comentou sua relação conturbada como leitor de Alencar:
“José de Alencar é, por assim dizer, um dos fundadores da literatura brasileira, até por sua louvável preocupação de afastá-la da influência portuguesa, com vícios e virtudes, até torná-la verdadeiramente nacional com uma linguagem, uma cor e uma sintaxe próprias. Mas sua ideologia afastou-se bastante do ponto central ao se aproximar muito da influência europeia, sobretudo, da literatura francesa, em que Senhora se enquadra. Esse romance filia-se ao romantismo de Alexandre Dumas, por exemplo, através do sonho e do ideal feminino que conclui pela punição da personagem. Mesmo assim, enquadra-se, claramente, no nível fundador, ao criar aspectos novos para a literatura brasileira.”
Carrero concorda com o status canônico de Alencar, é claro. Mas tem lá suas restrições. Faz questão de atacar um dos seus títulos mais famosos, o romance Iracema: “A personagem Iracema foi criada para representar a heroína Nacional, a virgem dos lábios de mel, uma pretensa bela indígena, com a maravilha física e a força espiritual da raça. Desde o nascimento, a personagem, apesar de todo o esforço do autor, não é convincente do ponto de vista literário, apesar da qualidade do conteúdo. E o que importa verdadeiramente na obra de ficção é a qualidade literária e não conteudística. O conteúdo, pouco a pouco, perde a força, até porque sempre surgem novas ideias, mas a estética e o literário não dependem de progressos ou retrocessos humanos, mas somente da qualidade. Daí a imortalidade da arte. Um quadro de Picasso tem tanto valor artístico, por exemplo, quanto a pintura rupestre de um grupo indígena da pré-história, independente das escolas estéticas.”
Já o crítico literário e escritor Silviano Santiago destacou as diferenças entre um clássico nacional e um clássico universal: “O nacional é fácil de ser definido. Basta valer-me de uma comparação: é aquele que define com clareza uma origem, uma linha de largada (José de Alencar, no romance, por exemplo), e os comparsas que entram numa corrida de revezamento que se transforma na história da literatura pátria. Aluísio Azevedo retoma o bastão de Alencar e o passa a Lima Barreto que, por sua vez, o entrega aos romancistas do Nordeste, e assim até os dias de hoje. Em Qual país, tal romance, Flora Süssekind fez a melhor apreciação dos equívocos da corrida de revezamento estética. Já o clássico universal é mais difícil de ser configurado. Correndo pelas beiradas do Ocidente, ele de repente abre uma brecha original na corrida de revezamento da literatura mundial, inventando uma nova escrita pessoal e transferível, que o leva à consagração. Clássico universal pode ser Gustave Flaubert, no romance, ou Charles Baudelaire, na poesia. Pode ser nosso Machado de Assis ou atualmente Clarice Lispector (independente da já conquistada glória pátria). Nacionalmente falando, clássico tem a ver com tradição. Universalmente falando, tem a ver com uma notável ruptura de estilo (e implicações decorrentes).”
Diante de tantas perspectivas sobre o que é um clássico, cheguei a uma pergunta inevitável para Silviano: é possível pensarmos numa obra cuja importância histórica supere a força literária? “A pergunta não faz sentido para um historiador da literatura. É, no entanto, a principal pergunta que qualquer crítico que tenha alguma coisa na cabeça, ou na sensibilidade, tem de fazer todas as vezes que pratica o ofício. O clássico pode estar na história da literatura (nacional ou universal) e pode não estar no último livro de crítica literária. Banido pela perda da força literária, vale dizer, pela falta de atualidade. Mas o clássico sempre estará na sala de aula. Como diria Orson Welles na Fábula do escorpião e da rã, não tem lógica, mas é do caráter do sistema educacional agir dessa maneira. Uma ferroada fatal na qualidade literária. Um brinde ao caráter! Em termos de Roland Barthes, se um texto é apenas legível, é clássico; se é escrevível é porque ainda guarda a insuperável força artística. Está vivo e é repetível aqui e agora”.
O crítico literário Kelvin Falcão Klein me trouxe uma questão bastante curiosa: para ele, todo clássico é necessariamente “datado”. “Ele (o clássico) precisa dessa distância entre o ‘hoje’ e o ‘outrora’ para conservar seu enigma e sua potência. Só um clássico consegue dar conta desse duplo pertencimento, consegue estar simultaneamente no ‘hoje’ e no ‘outrora’. E acredito que o pensamento crítico sobre literatura se funda nesse intervalo entre o ‘hoje’ e o ‘outrora’, buscando dar uma explicação a esse duplo pertencimento. Um exemplo de clássico que cabe perfeitamente nessa definição é Os sertões, de Euclides da Cunha”, apontou Klein.
A escritora e professora do Departamento de Letras da UnB, Regina Dalcastagnè, compartilhou da opinião de Klein de que todos os clássicos acabam sendo “datados”: “Na verdade, todo livro é datado — a ideia de que as ‘grandes obras’ possuem uma universalidade que as faz planar acima de seu tempo e lugar é um mito. Podemos ler Machado de Assis hoje, por exemplo, talvez com proveito e com gosto; podemos nos reconhecer nas histórias dele, podemos perceber que o Brasil do século 21 guarda continuidades com o Brasil no qual ele escrevia. Mas não podemos pretender que o escritor e sua obra não são frutos do Brasil do século 19. Sem isso, não conseguiremos compreender Machado, nem aproveitar o que quer que ele ainda tenha a dizer para nós. Em vez da busca por uma universalidade que não é humana, é mais interessante ver a beleza da literatura na sua capacidade de nos aproximar de outros, de diferentes”.
E continua: “É possível que um livro considerado clássico vá perdendo sua capacidade de comunicação com os novos leitores, vá perdendo seu interesse e sendo, assim, afastado do cânone — pelo menos até alguma ‘redescoberta’. Nem por isso, sua presença na história é apagada. Se influenciou outros criadores, se em algum momento participou das referências culturais da elite letrada do país, sua importância histórica está mantida.”
A crítica e professora de literatura da UFRPE, Renata Pimentel, também enveredou pela discussão em relação ao que “data” e como “data” uma obra considerada clássica: “Se ajustamos nossas lentes para quem produz os ‘discursos de autoridade’, aí, sim, poderemos ver diversas obras literárias no contexto brasileiro (só definir o que é literatura brasileira já enseja uma peleja e tanto!) que tiveram dias de glória e caíram no ostracismo, ou vice-versa, e um exemplo deveras conhecido que podemos citar é a ‘querela’ Haroldo de Campos/Antonio Candido com relação a Gregório de Matos. Ao fim e ao cabo, para mim, toda essa discussão é salutar e — ela mesma — clássica, o desafio que resta é mantermos leitores capazes de alimentá-la; aí reside o perigo que corre a arte literária (e toda e qualquer manifestação artística) a cada novo tempo de circos midiáticos e rasteirismos da sensibilização humana.”
E Kelvin Falcão Klein ainda complementou em relação às reivindicações (ou seja: as vozes de autoridade) que decretam o status de um livro: “A ‘força literária’ deve sempre ser reivindicada quando se trata de argumentar se tal obra é um ‘clássico’ ou não — exceto nas situações nas quais o ‘literário’ (o estilo, a linguagem, os procedimentos) é irrelevante, como quando Pierre Bourdieu lê Flaubert, por exemplo. A força literária está no olho de quem lê — e não pode ser um ‘a priori’: deve ser justificada e defendida. O resultado desse esforço é o clássico.”
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Mas antes de todas essas conclusões teóricas, houve um túmulo na imponente Catedral de Winchester. Visitar os restos mortais de Jane Austen no Dia dos Namorados é tipo a viagem à essência de alguma coisa que sempre nos envolveu e que precisamos averiguar se ela de fato existe. E justamente no único momento do ano em que ela “aparece”. Algo como ir à Lapônia, em dezembro, atrás de uma imagem que ligeiramente se configure como o Papai Noel das nossas fantasias. Se no caminho até a estação de ônibus de Londres me deparei com um sem-fim de vendedores de rosas vermelhas e com uma sofisticadíssima rede de informes publicitários nos fazendo acreditar que o amor pode ser conquistado (leia-se “domesticado”) por itens como uma lingerie ou um best of de Barry White; na Catedral de Winchester não havia coisa alguma destacando que aquela construção protegia um mínimo traço de alguém que chegou bem perto de compreender a confusão emocional que move o mundo.
No último dia 14 de fevereiro, não vi ninguém levar rosas vermelhas para Jane Austen (nem eu mesmo) ou entrevi casais prestando homenagem a quem jamais nos enganou que as coisas seriam fáceis. Havia, inclusive, poucos visitantes na Catedral. Mas fiz questão de acender uma vela e olhar demoradamente as inscrições na sua lápide, com todos os rapapés religiosos que fariam a autora cair na gargalhada e criar alguma das suas tiradas infames. Essa contemplação me deu uma estranha sensação de que, se eu fosse à Lapônia, Papai Noel também deveria existir e, provavelmente, estaria “guardado” em algum lugar. Pensando assim, deve mesmo haver alguma coisa lá fora. E que Jane Austen continue nos ajudando a entender “isso aqui”, como me avisou aquela certa leitora há alguns anos.