“Não quero ‘crentes’; acredito que sou demasiado mau para crer em mim mesmo; eu nunca falo às massas… Tenho grande medo de ser, algum dia, santificado”. A frase é do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que só não deve estar se revirando no túmulo, porque ele também não acreditava nisso. Ela foi publicada no livro Ecce homo (1888), um poético elogio ao ego que o pensador escreveu com o intuito de não ser confundido ou mal compreendido, pouco antes de perder a lucidez. Nietzsche não suportava a idolatria, tendo dedicado seu penúltimo livro, Crepúsculo dos ídolos (1888), a desmistificar a moral cristã, as tendências modernas e a própria filosofia. Ironicamente, ele é hoje ídolo de uma geração de jovens que, em boa parte, subverte seus escritos pinçando máximas de seu contexto para estampar páginas de redes sociais, pranchas de surf ou camisetas – entre as prediletas, “Sem música a vida seria um erro”, “O que não me mata, me fortalece” e “Eu só poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar”. Há, porém, quem se aprofunde deveras na obra do filósofo, a ponto de acreditar piamente em suas teorias e tê-lo como uma espécie de guru ou companheiro. Alguns até o chamam carinhosamente de “Bigode”, devido aos seus avantajados e característicos pelos faciais.

 

A frase sobre o Deus dançante foi o que impulsionou a estudante de sociologia Angelica Albuquerque, de 23 anos, a se dedicar aos escritos do pensador. Embora já tivesse ouvido falar de Nietzsche, ela nutria a ideia de que o alemão era pessimista e depressivo. “Eu tinha curiosidade sobre ele, mas só conhecia citações como ‘Cada pessoa tem que escolher quanta verdade consegue suportar’ ou ‘O evangelho morreu na cruz’. Sou naturalmente melancólica e achava que se lesse qualquer coisa de Nietzsche iria surtar ou até tentar suicídio, então nem cogitava”, se diverte. Quando se deparou com a frase hedonista em uma propaganda da Tangolomango, uma festa mensal de música brasileira criada em 2008, no Recife, percebeu que o alemão poderia ser positivo. “Um homem que queria que Deus dançasse não poderia me deixar infeliz. O primeiro livro que comprei foi A gaia ciência (1882) porque me disseram ser ‘alegre e florido’. Nele, me deparei com teorias como o Eterno Retorno e conheci um Nietzsche dionisíaco que me encantou profundamente”, lembra ela, que já leu quase todos os livros do pensador e tem tatuado um oroboro – em referência à eterna repetição que Nietzsche pregou pela primeira vez em A gaia ciência e tornou-se famosa pelo célebre Assim falou Zaratustra (1883-1885), que ganha agora nova edição pela Companhia das Letras com tradução de Paulo César de Souza.

 

Angelica conta que não duvida que os fatos se repetem infinitas vezes. “Basta a gente pensar em guerras e epidemias, em como elas aconteceram uma vez e mais outra e mais outra. Um dia estamos alegres, outros tristes, depois alegres de novo. Tudo vai e tudo retorna. Até na moda é assim”, argumenta. O Eterno Retorno é uma das teorias mais complexas de Friedrich Nietzsche e pressupõe que polos se alternam na vivência, numa eterna repetição que os torna faces de uma mesma realidade (saúde e doença, bem e mal, criação e destruição). Essa teoria não diz respeito a um tempo cíclico, mas a uma realidade que não tem um objetivo a cumprir. “Parece assustador (a ideia do Eterno Retorno) porque nós temos essa mania de novidade e de querer buscar uma razão em tudo. Mas, na verdade, me confortou bastante cessar essa procura. O foco tem que ser a vida e não o que está além dela. Nós temos que pensar em tudo que já vivenciamos e dizer: ‘passaria por isso de novo’. Temos que saber se viraríamos ou não a ampulheta”, afirma.

 

O estudante de filosofia Ítalo Lins, de 21 anos de idade, concorda. Fã de Nietzsche desde os 13, quando estava em crise com a educação católica que recebera, e se deparou ocasionalmente com um exemplar de O anticristo (1895) na estante do irmão, ele afirma que a teoria é uma maneira de fazê-lo aproveitar de maneira mais forte o tempo que foi destinado à vida, que, por sua vez, é única. “Eu penso no Eterno Retorno com frequência. Se eu fosse um spinozista seria uma espécie de carpe diem, mas vejo por um lado que não se restringe ao dia vivido. A ideia é se superar, mesmo nas situações adversas. Meu dia hoje pode ter sido ruim, mas o que eu posso fazer para que isso me engrandeça? De que maneira posso aumentar minha potência? É uma espécie de exercício”, explica. Com essa afirmação, Lins introduz dois outros conceitos de Friedrich Nietzsche: a Vontade de Poder e o Super-Homem, pontos de partida de Assim falou Zaratustra e abordados pelo pensador desde seus escritos de 1881. Tais noções, ampla e deturpadamente utilizadas pelos nazistas ao aplicarem seu ideal de superioridade da raça ariana, geraram um repúdio à obra de Nietzsche durante várias décadas. Esse super-homem nietzschiano, porém, não é um ser cujo desejo é dominar.

 

A Vontade de Potência, em Nietzsche, significa “criar”, “dar”, “avaliar” e “evoluir”. Trata de uma impulsão inventiva do homem e do universo. Uma provocação, na melhor maneira nietzschiana, como a que fez com que Ítalo largasse a faculdade de Direito para cursar a de Filosofia. “Nietzsche me incitou de uma maneira que seria ingenuidade da minha parte ignorá-lo. Ele é um divisor de águas para mim. Não se pode pensar a existência de outra forma, depois de se entrar em contato com ele. Suas ideias me fizeram aprimorar meu discurso sobre religião, estética e sensações. Mas, acima de tudo, aprendi com ele a estar a par da vida”, afiança. Segundo Ítalo, o filósofo é para ele como um amigo, pois ambos dividem problemas, situações similares e uma mesma linguagem. “Com ele eu vejo um mundo muito mais colorido, muito mais vivo, com inúmeras possibilidades a serem experienciadas. Mas não há algo confortante nisso. Talvez recair num dogma seja muito melhor, já que tudo está garantido. Em Nietzsche nada está garantido, e talvez isso seja a graça da vida: saber que conceitos não suficientes para interpretar o mundo, que a vida é uma contingência necessária, enfim”, conclui.

 

Iniciante no estudo da filosofia de Nietzsche, a estudante de Direito Gabrielle Duarte, de 22 anos, também vê por meio do pensador um mundo belo em suas incertezas. Ela se interessou de fato pelo filósofo, a quem chama de “Bigode”, depois que leu, há cerca de dois anos, o livro Quando Nietzsche chorou, escrito pelo psicoterapeuta Irvin D. Yalom, em 1995 (a obra é uma das responsáveis por resgatar o alemão). Então, começou a reparar em dezenas de referências a Nietzsche em filmes e músicas e também percebeu a quantidade de edições de bolso de livros do escritor. “Eu assisti ao longa Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Michel Gondry, 2004) e me deparei com a frase: ‘Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo seus equívocos’, creditada a Nietzsche. Depois, me toquei que na música Índios, de Legião Urbana, Renato Russo afirma ‘esse mesmo Deus foi morto por vocês’. Deus está morto: é Nietzsche. Um dia, estava no supermercado e lá estavam quase todos os livros de Nietzsche numa prateleira. Pensei: ‘esse bigodudo deve ter algo especial!’. Comprei uma edição de Humano, demasiado humano (1878) e vi o quanto ele é lindo”, conta.

 

De fato, não é raro encontrar referências a Friedrich Nietzsche no mundo pop. Em filmes como Gênio indomável (Gus Van Sant, 1997), A casa do lago (Alejandro Agresti, 2006) e A pequena Miss Sunshine (Jonathan Dayton, Valerie Faris, 2006) ele está presente. O último, aliás, faz uma sátira justamente aos jovens admiradores de Nietzsche. No enredo, o personagem Dwayne (Paul Dano, em excelente atuação), de 15 anos, tem uma caricatura do filósofo na parede do seu quarto; faz voto de silêncio; usa uma camisa onde se lê “Jesus was wrong” (Jesus estava errado); e aparece na grande maioria das cenas com Assim falou Zaratustra em mãos. Na música, por sua vez, é possível notar a influência do filósofo em nomes como Marilyn Manson, Pet Shop Boys, David Bowie, Kanye West e até mesmo no funk carioca, em que o Dj Mendigo e as Intelectuazudas cantam um refrão que repete incessantemente “O Eterno Retorno, o Eterno Retorno, o Eterno Retorno, Nietzsche já dizia”.

 

“Quando me viu com O anticristo em casa, minha mãe se espantou e perguntou se eu tinha me tornado ateia. Meu pai riu e disse que eu estava ficando intelectualizada. No ônibus, outro dia, um senhor ficou me olhando admirado. Se ele conhecia o ‘Bigode’, provavelmente estava pensando que eu era ‘mais uma dessas que vem deturpar o que ele escreveu’. Se não, devia me achar uma anarquista, niilista ou algo do gênero. Há essa espécie de ambiguidade em relação a obra de Nietzsche e eu compreendo. É interessante, porém, que ao mesmo tempo que essas abordagens raras podem comprometer o que ele escreve, elas podem fazer com que pessoas se interessem por ele”, teoriza Gabrielle. Paradoxos sempre foram marcantes na obra de Friedrich Nietzsche. Ele costumava, por exemplo, colocar lado a lado palavras totalmente antagônicas (“Nascer póstumo”; “Deus morreu”, “delicadamente mal-educado”). Contudo, provavelmente nenhum é maior do que essa popularização e consequente aprofundamento de suas ideias. O homem dinamite explodiu e, pasmem, beira à santificação.