Um livro é mais do que a narrativa que ele mesmo propõe. Por trás das escolhas de formato, fonte, papel e extensão, há a própria história do processo de produção da obra, um caminho árduo omitido do seu enredo, mas que o influencia direta ou indiretamente. Entre a ideia e a materialização dela, existem diversos obstáculos e prazeres a serem incorporados e redescobertos na obra. Um outro pastoreio, escrito por Rodrigo dMart e ilustrado por Indio San, é um dos casos em que essa interferência se torna um elemento importante para a própria realização do produto.

A dupla gaúcha enfrentou bem mais que angústias criativas para concluir o livro. Sim, claro que elas existiram - durante cinco anos, eles produziram quatro “bonecas” (versões impressas) de Um outro pastoreio, e o roteiro, que antes tinha 10 páginas, passou a ter mais de 100. Assim, o trabalho sofreu mutações profundas desde sua aparentemente simples proposta inicial: a de recontar a lenda popular do Negrinho do Pastoreio, uma das mais conhecidas no Rio Grande do Sul, em uma união singular de texto e ilustrações.

Segundo Rodrigo dMart, que veio ao Recife e a Olinda recentemente para divulgar a obra, a ideia original era dar uma roupagem contemporânea à história, mais conhecida na versão regionalista do escritor João Simões Lopes Neto. Na narrativa popular, o Negrinho é um escravo maltratado e espancado por seu dono por não conseguir capturar de volta um cavalo. Mas seu sofrimento é recompensado: passa a ser protegido por Nossa Senhora e espécie de padroeiro dos que precisam encontrar algum objeto perdido.

“Nós partimos de duas hipóteses. Primeiro, e se o Negrinho do Pastoreio não fosse um escravo, mas um ser elemental, uma espécie de arquétipo mitológico? Segundo, e se a santa da lenda, que acaba tendo uma denotação mais católica, apesar disso não ser explícito, fosse na verdade um entidade ligada aos orixás?”, expõe o autor, também jornalista e músico. Com esse foco, a dupla juntou à lenda as histórias de culturas e religiões africanas. Um outro pastoreio tem uma construção narrativa fragmentada, contada por meio da união de texto com fotografias, desenhos, bonecos e ilustrações digitais. Simão é um velho que caminha à noite até encontrar um menino, passando a apresentar-lhe e aos leitores a lenda do Negrinho do Pastoreio, revelando também aos poucos o envolvimento dos orixás nessa trama. Aparentemente complexo, esse fluxo acontece naturalmente, mediado pela bela relação entre as sombrias e habilidosas ilustrações de Indio San e o texto lírico, com tom de fábula, tecido por Rodrigo, também composto por poemas e cantos.

Como o autor aponta, a escolha da temática dos orixás demandou uma pesquisa extensa – evidenciada no material extra, que traz a versão original da lenda, um glossário e outros textos -, que foi desde a consulta de documentos e livros até a visita a terreiros. “Eu não me considero de religião nenhuma, sou apenas muito curioso por elementos de qualquer mitologia. A dos orixás é muito interessante porque não tem, diferentemente de outras, como a do islamismo, do catolicismo, do judaísmo, uma característica moralista. Os deuses erram, acertam, sacaneiam, choram, brigam, morrem, renascem”, descreve o autor. “É uma grande telenovela.”

DIVERSIDADE DE GÊNEROS
Um dos diferenciais de Um outro pastoreio é a impossibilidade de conseguir encaixá-lo em um gênero específico. Está longe de ser uma narrativa ilustrada, porque muitas vezes os desenhos têm balões e são protagonistas das páginas. E, mesmo que em alguns momentos traga páginas em formato de quadrinhos e verdadeiras cenas construídas apenas com ilustração, o livro também não fica muito tempo nessa opção. Talvez o termo novela gráfica – em um sentido diferente do associado às HQs – seja a denominação mais próxima.

“Quando o projeto começou, a ideia era que, cada página de desenho abstrato viesse com um trecho de poesia, mas isso só serviria se a gente ficasse muito próximo do enredo tradicional da lenda”, conta Rodrigo. Quando os dois decidiram criar em cima da narrativa original, foi necessária uma nova forma de contar. “Nessas idas e vindas, o Indio foi pesquisando vários caminhos, que acabaram levando-o de volta a um projeto da faculdade de stop motion com bonecos. O livro virou quase uma fotonovela, com balões e tudo”, lembra o escritor.

A negociação foi árdua para achar o ponto de equilíbrio entre texto e imagem. “Na verdade, se não tivéssemos lançado, ainda estaríamos mexendo no livro, seria uma alquimia eterna”, brinca Rodrigo. Um atestado disso é a quantidade de versões impressas, que foram incorporadas às apresentações da obra que os autores fazem durantes as turnês pelo país. O caminho percorrido até o resultado final se tornou mais uma narrativa do livro, uma história exterior à obra, mas que passou a ser fundamental para também entendê-la – e valorizá-la ainda mais.

Depois de várias tentativas de convencer editoras a aceitarem o projeto e de também “bater na trave” em editais de fomento, a dupla decidiu partir para um caminho próprio, tão difundido atualmente: o financiamento coletivo, ou crowdfunding. “O que fizemos mesmo foi uma boa e velha ação entre amigos. Só que talvez essa fórmula de publicação do livro tenha chamado a atenção das pessoas. Isso está muito em voga hoje ”, opina o autor.

Segundo Rodrigo, com a opção feita, o cálculo para definir o valor necessário foi simples: eles queriam custear uma tiragem de mil exemplares, caixas e embalagens e também envio para os colaboradores. Esperavam que cada um dos dois convencesse cerca de 50 amigos a ajudar com R$ 100. “Para nossa surpresa, em pouco mais de três semanas, a gente conseguiu vender 160 cotas”.

A contribuição dava direito a duas cópias em capa dura, coloridas, numeradas e autografadas, com o envio incluso. “Uma coisa boa foi que nós conseguimos essas vitórias depois de ouvir das editoras coisas desse tipo: ‘Como é? Vocês querem editar em capa dura? Colorido? Com papel especial? Vocês estão loucos, não é viável’”, recorda Rodrigo. As rejeições iam pelo mesmo caminho. “Elas sempre foram reclamando do custo, nunca ninguém fez sugestões ou questionamentos ao livro. Ninguém se preocupava em fazer o papel de editor. Então, no fim, foi necessário que nós também aprendêssemos a editar a nós mesmos, o que foi um trabalho doloroso”, conta.

Os nãos escutados foram essenciais para a dupla: “Acabaram até ajudando no processo de criação, porque a gente teve mais tempo”. Com os cinco anos de criação de Um outro pastoreio na bagagem, que rendeu aos dois também um editora própria, a Gaveta Editorial, eles organizam agora novos projetos. Indio San trabalha numa história em quadrinhos, Escárnio, já perto de ser finalizada. “Estamos pensando agora na forma de lançá-la. Imaginamos em algo diferente, com outro mecanismo”. Enquanto isso, Rodrigo escreve um livro de terror, A escadaria - os projetos são individuais, mas eles sempre trocam comentários sobre suas produções.

Os gaúchos ainda estão produzindo mais uma obra em conjunto, com o nome provisório de Lobos e borboletas, uma mistura de lendas indígenas com cultura cigana, tendo o antropomorfismo como tema. “Esse deve ser algo mais próximo ao Um outro pastoreio. O argumento está pronto, mas a gente tem que escrevê-lo para começar mesmo o trabalho”, antecipa. E que ninguém duvide que o livro vai sair, não importa se em breve ou se daqui a alguns anos, se por uma editora ou pelas mãos da dupla e de seus colaboradores: Rodrigo e Indio já provaram que até tiram alguma força de dificuldades editoriais.

O livro
Um outro pastoreio

Gaveta Editorial
Páginas 208

Preço R$ 50