Desde a sua massificação, as histórias em quadrinhos se sustentaram principalmente pela dupla presença em bancas de revistas e em cadernos culturais dos grandes jornais. As tirinhas, bastante populares, continuam mantendo sua importância, mas agora blogs e sites disputam espaço com os impressos; as bancas, local onde são vendidas a maioria das HQs, em números absolutos, vêm perdendo importância, pelo menos para quem acompanha notícias editoriais. As sagas de heróis da Marvel e da DC Comics, lançadas aqui pela Panini, são cada vez mais criticadas pela falta de criatividade e mesmice – não é à toa que os principais sucessos comerciais recentes são todos mangás. O honroso caso de um gibi brasileiro bem-sucedido não foge dessa febre: o Turma da Mônica jovem, que traz os personagens clássicos para a estética oriental.
As livrarias se tornaram o foco de atenção, se não da maioria do público, de uma parte respeitável deste e da vasta maioria da crítica. As graphic novels já são uma realidade editorial, mas os lançamentos vão bem além disso: as coletâneas de tiras de Rafael Sica (Ordinário, Quadrinhos na Cia) e Arnaldo Branco (Mundinho animal, Leya/Barba Negra) e a versão nacional da tradicional revista (em formato de livro) argentina Fierro (Zarabatana) são exemplos disso. As obras até servem como amostras do catálogo das principais editoras “de livrarias”, que, somadas à Conrad e à Devir, formam o panteão nacional da área.
Em meio a esse mercado que importa tanto sucessos comerciais como quadrinhos autorais consagrados e começa agora a dar mais atenção a autores brasileiros, algumas iniciativas ousadas passam despercebidas. É o caso da editora paraibana Marca de Fantasia (www.marcadefantasia.com), criada em 1995 por Henrique Magalhães. Autor de quadrinhos e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ele cuida sozinho dos mais de 90 livros do seu catálogo e de 12 revistas e fanzines.
“A criação da Marca de Fantasia foi um processo de amadurecimento de meu trabalho editorial por muitos anos. Desde cedo comecei a publicar revistas em quadrinhos com minha personagem Maria, de tiras políticas e humorísticas. De 1976 a 1984 saíram 10 números da revista e dois álbuns”, conta o editor. Durante os anos 1980, Henrique mergulhou no mundo dos fanzines, chegando a criar o Marca de fantasia, que virou o nome do novo empreendimento. “A ideia principal da editora era, e ainda é, divulgar os novos autores que tenham um trabalho personalizado, o resgate da obra dos mestres e os estudos sobre as múltiplas expressões dos Quadrinhos e da Cultura Pop”, aponta.
INDEPENDENTE
Para Henrique, poucas editoras brasileiras de quadrinhos de fato merecem a alcunha. “O que há é publicadoras de livros, que se apoiam nos grandes sucessos do mercado internacional”. A dicotomia entre quadrinhos de bancas e de livrarias – e entre grandes e pequenas editoras – é um dos problemas do mercado brasileiro para ele. “Os primeiros têm pouca inovação, buscam o lucro rápido e certo. Os segundos são mais criativos e renovadores, e são os que investem nos autores brasileiros. Sua produção se dá em forma de álbuns, mas, infelizmente, o alto custo e preço elevado restringem o acesso do público”, opina.
O modelo de gestão da Marca de Fantasia e de outros empreendimentos alternativos busca trabalhar nas lacunas das duas formas de distribuição. “Por fora, temos as editoras independentes, sem fins lucrativos, que produzem pequenas tiragens, mas que se permitem todo tipo de experimentação”, situa. A casa, segundo ele, alcança repercussão “pela instabilidade do mercado e pela falta de visão dos editores”.
Assim, muito além de coletâneas de tiras e graphic novels – mas sem deixar de incluí-las -, o catálogo da editora é voltado para dois nichos normalmente menosprezados pelas grandes da área, fundamentais para o que Henrique chama de caráter “independente por convicção” da editora. O primeiro remonta às suas origens. “Apesar de os fanzines terem um arrefecimento de sua produção, em parte pela ascensão da internet, eles continuam sendo editados, com uma visível melhoria gráfica e editorial”, defende, destacando a importância das publicações para o a circulação de ideias. Como exemplos, ele cita o 1º Anuário de fanzines, zines e publicações alternativas, da Ugra Press, e o Top! Top!, da própria Marca de Fantasia, já no número 26.
No entanto, o carro-chefe do projeto é a segunda área, a de livros acadêmicos. A editora, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB, tem dois selos para ensaios e artigos. “Temos a série Quiosque, dirigida aos estudos sobre quadrinhos e animação, e a série Veredas, voltada aos estudos de Comunicação, Linguística e Cultura Pop”, define o quadrinista. “São os que mais saem”.
“O maior êxito de nossa editora são os livros teóricos, que têm servido de fundamentação para inúmeras pesquisas acadêmicas. O mercado desconsidera esse filão e nós investimos nele para atender à crescente demanda do público”, comemora Henrique. Para ele, trabalhos de conclusão de curso e outras produções acadêmicas são uma fonte extensa de bons estudos, prontos para serem publicados.
CATÁLOGO
Aberto ao recebimento de originais de autores, Henrique diz buscar a publicação de obras com “conteúdo crítico e reflexivo”, sem se interessar pelas que são “mero entretenimento”. “Quadrinhos humorísticos (tiras) e experimentais são muito bem-vindos, por enquadrarem-se no conceito de quadrinhos autorais. Para os livros teóricos, priorizamos os textos curtos, como ensaios”, avisa. Os envios, no entanto, demoram a ser lidos – ele é o único responsável e a quantidade de obras ultrapassa o tempo disponível para analisá-las.
Além de autores acadêmicos e iniciantes, a Marca de Fantasia conta com alguns nomes de bastante destaque no cenário nacional e mundial dos quadrinhos. O francês Patrice Killoffer, autor da elogiada obra experimental 676 aparições de Killoffer, lançada pela parceria entre Leya e Barba Negra no começo do ano, é o nome mais célebre do catálogo. Seu livro Quando tem que ser é uma coletânea de histórias curtas do autor, publicada originalmente em 2006. Enquanto o livro da Leya foi bastante celebrado, até pela vinda do quadrinista para a Rio Comicon em 2010, o título da editora paraibana, sem o poderio de circulação do grupo português, foi pouco comentado.
Killoffer, assim todos os demais autores, veio para a Marca de Fantasia justamente por seu caráter independente. “Trabalhamos em parceria com os autores, que cedem seu trabalho e recebem 10% como direitos autorais em exemplares da publicação, na medida em que são produzidos”, explica Henrique. Além do francês, o editor cita Claire Bretécher, Sergio Mas, Cristian Mallea, Gonçalo Júnior, Shimamoto, Edgar Franco, Edgard Guimarães, Elmano Silva, Antônio Cedraz e Luiz Saidenberg como outros colaboradores de destaque: “Eles estão conosco por pura generosidade e companheirismo, mas por que também consideram importante a consolidação de um empreendimento editorial independente”.
Em abril, a editora lançou dois novo volumes: o quinto número da revista Artlectos e Pós-Humanos, de Edgar Franco, com quadrinhos poéticos; e a coletânea GAG: o humor é o motor, cujos autores foram selecionados por concurso. “Em maio, será lançado um álbum com o resgate da obra de Messias de Melo, um dos mestres dos quadrinhos brasileiros, e teremos nova edição do álbum Guerra das ideias, de Flávio Calazans”, antecipa. Os planos futuros ainda incluem facilitar a distribuição de suas edições. “Há um ano estamos implementando os livros eletrônicos, que darão mais agilidade à venda e envio dos livros”, finaliza.