É inacreditável a quantidade de definições que você pode encontrar envolvendo o conceito de História, como se cada autor quisesse tomar seu real significado para si. É compreensível: História não é só o que a gente viveu. Mas o que estamos fazendo, recriando, imprimindo e “roubando” significados, sem nem sentir, neste exato momento. “A História é uma ciência e pronto”, decretou um enfático J. B. Bury. Para Lamartine, “ela ensina tudo, inclusive o futuro”. Já o pessimista Hegel reclamou que aquilo o que a gente aprende com a História é que “nada se aprende”. Erraríamos mais e mais, como se fosse sempre a primeira vez. Ainda bem que nem todos pensaram/pensam assim. Para o pernambucano Amaro Quintas, por exemplo, História tem a ver – ou melhor: tem tudo a ver – com a ideia de liberdade. Lembrar para libertar.
As comemorações pelo centenário de nascimento desse historiador, professor, advogado e escritor recebem reforço considerável com o lançamento, na segunda quinzena de abril, de Amaro Quintas – Historiador da liberdade, da Cepe Editora, que reúne num só volume seus principais livros: A Revolução de 1817, O padre Lopes Gama, um analista político do século passado e O sentido social da Revolução Praieira, os quais resumem o que se convencionou chamar de “o espírito libertário de Pernambuco”.
A figura humana e a visão historiográfica de Quintas são os alvos da coletânea que traz à tona o homem elegante de gostos refinados que viveu sob a luz dourada da belle èpoque; o intelectual digno que sempre se posicionou a favor de causas humanitárias, mesmo correndo riscos; e o historiador contextualizador que defendia um socialismo utópico. A ideia partiu da filha do historiador, a antropóloga e escritora Fátima Quintas. A trilogia tem prefácios do jornalista e historiador Mário Hélio e do professor e escritor Nélson Saldanha, que destacam que os principais pronunciamentos de Quintas continuam sendo uma referência para estudantes, cientistas sociais e historiadores, mesmo quando cotejados com a contemporaneidade.
Amaro Soares Quintas nasceu no Recife em 22 de março de 1911 e faleceu em 20 de maio de 1998. Viveu intensamente, numa época em que o mundo fervilhava de novidades, conflitos e ideias. Ele tinha apenas 28 anos quando escreveu, em 1939, seu estudo sobre A Revolução de 1817, como tese de concurso; logo depois, escreveu sobre o padre Lopes Gama; e em 1952 o seu trabalho considerado clássico, O sentido social da Revolução Praieira. No prefácio sobre A Revolução de 1817, para a trilogia, o jornalista Mário Hélio destaca a maturidade com que ele analisa os acontecimentos e critica aspectos e personagens específicos.
“É a história sociopolítica de Pernambuco do século 19, marcada por duras contestações e lutas com o poder central – o que valeu ao Estado a alcunha de Leão do Norte - que vamos encontrar no livro, mas principalmente a personalidade de um historiador que não se contentava com o factual, preocupando-se com os aspectos sociais da história. Isso se percebe, por exemplo, quando ele desanca o sistema português em razão do baixíssimo nível de educação no Brasil colonial, quando critica a ignorância e submissão dos brasileiros e a visão dos revolucionários a respeito da liberdade aos negros, ou, ainda, quando comenta que o excesso de idealismo aliado ao amadorismo foi a principal causa do fracasso da insurreição de 1817”, diz Mário Hélio.
O prefaciador do estudo sobre Lopes Gama, Nélson Saldanha, diz que “com esta obra, Quintas rematou o ciclo das revoluções pernambucanas, cujo processo histórico envolveu diversas faces e fases do Pernambuco de então: liberalismo, socialismo, conservadorismo, crítica social assistemática. Com o estudo de Quintas sobre Lopes Gama temos uma mostra, viva e expressiva, do que era a imprensa política em Pernambuco e dos problemas nela debatidos”.
ATRÁS DA CORTINA DE FUMAÇA
Historiador que viveu na pele muitos dos principais acontecimentos históricos recentes do País, sobre seu conceito de História é ainda Fátima Quintas quem dá o melhor testemunho: “Não lhe bastava o fato. O documento. O papel. A sentença proferida. Absorvia as entrelinhas para captar o que se escondia atrás da cortina de fumaça. Uma História de homens, não de fantoches. Uma História de gente, não de bonecos. Uma História de sentimentos, não de robotização. Uma História por vezes regional que se disseminava em universalidade. Ciência sem fronteira, interdisciplinar, a tanger intersecções com filigranas de emoção, compreensão, intuição”.
Sua capacidade de ressaltar o traço humano nos episódios históricos é também relembrada pela filha: “Dotado de uma memória excepcional, era capaz de citar textos inteiros sem interromper o curso do pensamento. Descrevia episódios históricos com uma dramaticidade inigualável. Detalhes de personagens, enredos de bastidores, amores proibidos, paixões clandestinas, um vís-à-vis íntimo, ausente de distanciamentos ou neutralidades postiças. Entre passado, presente e futuro, os acontecimentos alcançavam um realismo tão fantástico que se corporificavam em cenários nítidos e claros. Um desenrolar ‘novelesco’, um tanto hitchcokiano, que culminava com um mise-en-scène mágico, teatral, consistente”.
Sempre rodeado de livros, Quintas dividia o amor pela História com o amor pela Poesia, a Literatura, a Filosofia e a Sociologia. Lia para os filhos poemas de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Garcia Lorca e Pablo Neruda, seus preferidos. Foi professor dos melhores colégios do Recife – Ginásio Pernambucano, Oswaldo Cruz, Pinto Júnior, Escola Normal, Padre Félix e Ateneu Pernambucano.
Ensinou na Fafire, na Unicap e na Faculdade de Filosofia de Campina Grande, na Paraíba, entre outros centros acadêmicos. Suas aulas teatralizadas, dramáticas, prendiam a atenção dos alunos da Universidade Federal de Pernambuco, até que o golpe militar de 1964 cassou seu direito de lecionar, sob a acusação de “idealismo subversivo”. Ele sofreu com isso pelo resto da vida, segundo testemunha Fátima, ainda assim “nunca abdicou de sua ética nem da luta pela igualdade social, considerando a liberdade indissociável da natureza humana.”
Sem nunca ter sido político profissional ou candidato a cargos eletivos, Quintas tinha posição política declarada. Posicionou-se contra a ditadura Vargas (1937-1945), sendo por isso perseguido; quando a União Democrática Nacional (UDN) foi organizada como um partido de oposição ao Estado Novo, em 1944, ele tornou-se militante da Esquerda Democrática, presidida no Recife por Gilberto Freyre. Ao separar-se da UDN, a Esquerda Democrática passou a ser um partido autônomo, incluindo no seu programa político o apoio ao divórcio. Como católico praticante, Quintas não aceitou a decisão, desligando-se do partido. Apesar disso, continuou a defender outras reivindicações da esquerda brasileira da época, como o monopólio estatal do petróleo, a reforma agrária e o combate ao acordo militar Brasil-Estados Unidos.
Em 1964, com o início da ditadura militar e a criação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), foi cassado por ter feito uma conferência no Teatro de Santa Isabel sobre o tema A livre determinação dos povos, incluindo no texto o assunto da livre escolha do regime político, o que provocou o descontentamento dos militares. Foi o primeiro diretor do Departamento de História Social do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, atual Fundação Joaquim Nabuco, cargo que exerceu até 1964. Foi eleito para a Academia Pernambucana de Letras, tomando posse no dia 26 de janeiro de 1962,onde ocupou a cadeira nº 32, e era sócio, entre outras instituições, do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Colaborou com o Diario de Pernambuco e o Jornal do Commercio, onde escreveu diversos artigos sobre História e Política. Foi um homem que não só reescreveu a história. Foi um homem que viu a História.
O livro:
Amaro Quintas - O historiador da liberdade
Editora Cepe
Páginas 456
Preço não definido