“Qual o seu desejo mais íntimo? O meu, não vou contar não...”. Esta matéria poderia ter um começo assim, suspeito, se fosse baseada em um release do lançamento de um perfume. Quem mostra essa pequena pérola das assessorias de imprensa – não sem ironizar a pessoalidade desnecessária daquele início – é a jornalista Maisa Infante, do blog Crônicas do dia-a-dia (http://maisainfante.blogspot.com). No site, a paulista reúne alguns erros e absurdos enviados para as redações de jornais, contribuindo com um dos passatempos preferidos dos repórteres, não importa seu veículo ou área: ironizar e reclamar de releases.

Esses textos, que misturam a função publicitária com a técnica jornalística, são uma das principais bases do jornalismo. Chegando às centenas diariamente, eles passam a ser o ponto inicial da maioria das matérias de uma empresa de comunicação, anunciando um evento, convidando para uma coletiva de imprensa ou sugerindo uma entrevista relevante. Caso você pergunte aos repórteres o release mais marcante que já receberam, com certeza eles irão lembrar-se de algum texto cheio de erros ou mesmo sem sentido. Nunca irão citar uma peça útil e sucinta.

Para quem tem pouca familiaridade com o assunto, release (lançamento, em inglês) é nome original das propostas de pauta enviadas pelos próprios interessados na publicação da matéria, empresas, órgãos públicos, artistas e outros. O professor Gilberto Lorenzon, autor, junto com Alberto Mawakdiye, do Manual de assessoria de imprensa, define-o como “um ‘provocador’ do interesse do jornalista”. É, para ele, uma das principais ferramentas de comunicação de uma empresa. “O papel da assessoria é abrir uma interlocução com a imprensa para levar as fontes que o contrataram para as pautas das redações. Assim, o release pode ser visto como um convite para que o jornalista venha até nosso cliente para conversar sobre sua produção”, descreve.

Segundo o professor, a ferramenta popularizou-se no Brasil no final da década de 1930. “Historicamente, o release surge com maior destaque durante a ditadura de Getúlio Vargas”, conta. A sua utilização original, na verdade, tinha uma intenção negativa: “Ele aparecia como uma barreira, uma tentativa de afastar os jornalistas das fontes oficiais. Sua função era impedir que as fontes oficiais fossem questionadas pelos jornalistas”. Hoje, Lorenzon defende que a prática é uma das formas mais democráticas de se comunicar com a imprensa. “O release não precisa ser escrito por um assessor famoso ou influente para emplacar. Basta ter uma informação útil sobre a fonte”, exalta.

Das centenas de textos enviados apenas alguns – dez ou quinze no máximo – tendem a ser utilizados. O jornal O Globo, por exemplo, recebe mais de mil por dia, segundo Lorenzon, o que torna a maioria deles uma espécie de spam. A primeira obrigação, então, do assessor é fazer um texto direto e conciso. “O bom release precisa trazer uma proposta de matéria e ter densidade”, define o professor. A linguagem do texto de assessoria deve ser invisível e natural, a despeito do conteúdo moderado de apologia publicitária.

Para o professor, uma das características do release é o uso de elementos do texto jornalístico. “O release é uma peça muito técnica. Ele é o reflexo invertido de uma matéria, com a mêsma estrutura dela. Só é mais reduzido, mas deve ter todos os componentes dela”, ensina.

Fugir desse padrão ou se descuidar na hora de escrever termina levando a erros – justamente o caráter cômico das peças. Os mais comuns são títulos surreais, deslizes de gramática, trechos sem sentido e o excesso de adjetivação. Não é raro ver no campo de Assunto de um e-mail algo como “NATAL E RÉVEILLON: Depressão, Melancolia e Ansiedade com Horário Marcado”, “Dicas para ajudar seu marido a curtir o verão”, ou “Expor o Corpo e Fazer Sucesso é um direito de todos no Verão” – todos exemplos reunidos esporadicamente no perfil do Twitter @comuniz, mantido por um repórter que não informa seu nome.

“Há um erro muito recorrente por parte de nós assessores, que é o de produzirmos o release como uma reportagem propriamente dita. Quem deve fazer uma matéria é o jornalista, que vai visitar as fontes e apurar”, aponta Lorenzon. Ainda assim, ele diz que o principal problema é quando a intenção comercial da peça atrapalha o distanciamento jornalístico. “Os piores releases são os que trabalham com a linguagem da publicidade. Tanto que alguns repórteres brincam: ‘Nos releases, todas as empresas são líderes no seu setor’. Essa linguagem deveria ser, na verdade, muito próxima da linguagem do jornalismo”, opina.

Em áreas menos factuais, como os cadernos de cultura e de variedades, os textos ainda cometem mais uma falha, ao tentar dar uma importância urgente e desmedida a eventos e novidades menores. “Nesses casos, a tendência das peças é serem mais soltas, até caindo no vício do nariz de cera (como se chama, no jornalismo, o começo de matérias que demoram muito até chegar à sua temática principal)”, critica Lorenzon.

ASSESSORIA LITERÁRIA?
Além de trabalhar como assessor, Lorenzon ministra com frequência cursos voltados para os profissionais que atuam na área. Em alguns casos, ele se volta para temáticas específicas, como media training e serviços para órgãos públicos. O que chama atenção, no entanto, são as aulas que desenvolveu em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL), em São Paulo. O nome do curso é inusitado: Jornalismo literário em assessoria de imprensa.

O que o texto de autores como Joseph Mitchell, John Hersey, Gay Talese e Truman Capote poderia ter a ver com um trabalho ligado em essência a um cliente? A primeira impressão é a de que o curso defenderia uma escrita mais solta e elaborada dentro do espaço tradicionalmente curto e direto do release. Lorenzon começa a explicar: “Foi um curso muito interessante. As assessorias de imprensa fazem jornalismo literário sem dar esse nome a ele”.

Para ele, jornalismo literário pode ser definido como a humanização das reportagens. “De certa forma, ele é um aprofundamento da matéria nos personagens”, opina. Assim, segundo o professor, vários assessores trabalham auxiliando a execução de matérias literárias sem saber. “Vamos tomar como exemplo uma reportagem televisiva sobre o aumento de uma passagem de ônibus por parte da prefeitura. Para não ficar apenas nos números, o jornalista quer contar a história a partir de um personagem, do impacto que isso tem na vida dele”, conta. “Nós, na assessoria de imprensa, é que normalmente arranjamos ou sugerimos ao jornalista esses personagens que se encaixam em um determinado perfil pensado para a matéria”.

Existem dois grandes problemas na proposta. Primeiro, o jornalismo literário é muito mais do que aprofundamento nos personagens. Ainda que a maioria dos textos do estilo também apresente esse elemento – Hiroshima, de Hersey, os perfis e livros temáticos de Talese, a reportagem descritiva de Capote etc –, o posicionamento autoral e a relevância do trajeto percorrido pelo repórter para abordar o assunto são elementos fundamentais. Depois, a forma que a humanização e a utilização de personagens é feita na maioria das reportagens e matérias é quase formal, em uma aproximação fria das fontes, determinada por manuais.

A principal contradição da ideia, no entanto, reside no fato de que é justamente o release um dos mecanismos que fez definhar o jornalismo de rua, uma das principais exigências do jornalismo literário. Essas peças, uma forma de aproximação (interessada) de uma fonte e de democratização da informação para os veículos de imprensa, são um dos hábitos que fazem matérias inteiras serem feitas apenas por e-mails ou telefonemas. Pensando na possibilidade de um assessor indicar fontes para uma matéria aprofundada, talvez a principal pergunta seja: é possível encontrar histórias atemporais, profundas e literárias em meio à humanização calculada das assessorias? Com a resposta, nossos assessores de jornalismo literário.