oulipo ilustração Lin

Falar de ou sobre Ítalo Calvino (1923/1985) talvez exija, neste centenário do seu nascimento (15/10/1923), uma conversa com o escritor, tal a diversidade e importância do que diz. Se falo no presente é por considerar que o O Cavaleiro Inexistente (1959), ou os habitantes das Cidades invisíveis (1972), ou, ainda, Se um viajante numa noite de inverno, ou mesmo Palomar (1983) e Marcovaldo (1963), entre outros, sejam hoje tão presentes nas bibliotecas, salas de aulas e discussões quanto estiveram nos distantes meados de 1980, milênio em que viveu Calvino. Quando preparava suas Lições Americanas, que legou ao mundo sob o título em português de Seis Propostas para o próximo milênio, aparecido postumamente, graças ao empenho de sua esposa, Esther Calvino, que acompanhou o trabalho das projetadas seis conferências, atendendo ao convite da Universidade de Harvard, em Cambridge, integrando o programa Charles Eliot Norton Poetry Lectures, para implementação no ano letivo 1985/1986. O escritor faleceu em 19/9/1985, deixando inacabada a sexta Lezioni americane, quem sabe, “oulipianamente”, para o leitor cultivar o sentido da incompletude perfeita. Ou não.

Eremita em Paris (1974), o escritor, rompido politicamente, desembarcou em 1967 no grupo que agitava a cena literária parisiense OuLiPo (Ouvroir Pour Littérature Potentielle). Naquela minúscula, mas expressiva, sociedade, trocou experiências com Georges Pérec, Raymond Queneau, François le Lionnais, Quevel, entre outros. Na convivência com os escritores, alguns oriundos do surrealismo bretoniano, irritados com autoritarismos e ensaiando irreverências e insubordinações, Calvino, abandonando as regras do partido comunista ao qual era filiado, encontrou, no grupo do OuLiPo campo fértil para o exercício de novas e ressuscitadas restrições, a serviço da literatura.

Na oficina, conheceu um romance que suprimia a letra e, importante na língua francesa, evitada magistralmente por George Pérec no livro La disparition, acolheu a linguagem irreverente de Raymond Queneau, nas andanças da menina Zazie (Zazie dans le Metro) e outras tantas aberturas para a dita literatura potencial. Nos textos do criador de Agilulfo, Bradamante, Rambaldo ou do velho narrador Qfwfq, já pontilham nas narrativas de Calvino o gosto do inusitado, exercício criativo exacerbado, do experimento a que não escapam topônimos, antropônimos e situações esdrúxulas. Se Calvino aprendeu com os oulipianos, muito ensinou, também. Trocas e conluios.

Na França, Calvino exercitou ainda mais os sentidos, produzindo textos de notável agudeza, refletindo sobre sua relação com o mundo sensível, estabelecendo a união entre o visível e o apenas imaginado, exacerbando a importância do ato de ver, como no texto Poubelle agrée, por exemplo, o lixo suscita considerações da ordem do sensível, como diria Jacques Rancière (1940). Estreando na ficção com A trilha dos ninhos de aranha, em 1947, Calvino ampliou seus horizontes flertando com o

fantástico, a fábula, tendo cumprido seu pacto com o Neorrealismo no livro de estreia acima referido. Com a ficção, aliou a crítica, e a reflexão mesclada de lances autobiográficos. Via de regra, o observador agudo traía o criador de infinitos mundos, trazendo a observação penetrante de um olhar que buscava além. Assim, o leitor que entra na livraria e compra um livro torna-se, com aquela aquisição, personagem importante do livro adquirido. Ah se um Viajante...

Não casualmente, ao propor caminhos para a arte neste milênio, o autor elenca elementos de importância vital neste novo mundo que ele não viu, mas pressentiu, começando por propor a visibilidade, condição para uma prática artística condizendo com demandas de um novíssimo tempo. Neste novo mundo, as Seis Propostas de Calvino respondem a algumas indagações. Seus ensaios miram o mundo contemporâneo, ávido de novidades e de conflitos com uma tradição que não raras vezes tenta renegar, escamoteando a lição dos pilares da arte, em geral, que alicerça movimentos e tendências ditas tão vanguardistas. Falta que faz a leitura de A sombra de Ulisses ((2005), de Piero Boitani, ou Por que ler os clássicos? (1991), de Ítalo Calvino.

Por falar em questionamentos, desconfortos e talvez cancelamentos (persecutória manifestação), Por que ler os clássicos?, título seminal da bibliografia do grande romancista que não negligenciou a crítica, a autobiografia, um patchwork de reflexões, memórias e autoavaliações, a mescla dos gêneros, a experimentação, como bom OuLiPiano. Fica um convite ou uma intimação: Por que ler Calvino? Ao leitor sequioso do novo, uma novidade que permanece novidade. Há Calvino e Calvino para muitas leituras e discussões.