Hilda Hilst publicou crônicas semanais no Caderno C do jornal Correio Popular, de Campinas, durante dois anos e oito meses. Começou publicando às segundas, terminou aos domingos. Estreou no dia 30 de novembro de 1992, em pleno processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, um mês antes de sua renúncia. Seu último texto saiu no dia 16 de julho de 1995, um semestre após a posse do presidente Fernando Henrique Cardoso. Entre os dois, houve o governo Itamar Franco, a chacina da Candelária, o escândalo dos Anões do Orçamento e o tetracampeonato nos Estados Unidos.
A política do período está presente em quase todas as crônicas de Hilda, embora ela tenha deixado claro, em O verme no cerne, que aquele não era um de seus temas favoritos: “Se quiserem me chatear seriamente é só começar a falar de política & negócios”. Talvez por isso sua opção pela escatologia ao tocar no assunto. Mesmo que eivada de poesia. Depois de pedir licença ao leitor para ir logo ali, vomitar em seu penico de estanho, Hilda costumava deixá-lo na companhia de seus poemas. Porque, para ela, o verdadeiro homem político deveria ser um “poeta no seu sentido mais fundo, intenso e livre. Intenso a ponto de tomar para si mesmo a dor do outro. E tentar extirpá-la”. Fazer política era “dar vida ao outro”.
Fazer crônica também é, de certa forma. E Hilda sabia escrever crônicas. Se bem que por linhas tortas, extremamente originais. Ela sabia chamar o leitor para a conversa, ou para a briga. Interessante é que declarava não gostar do ofício. “A crônica é um verdadeiro martírio para mim, porque de alguma forma tem que se aproximar de um texto ‘arrumadinho’, que todos entendam”, escreveu. A suposta obrigação do gênero de “ser pra cima” era algo que também a aborrecia. Mesmo que nunca tenha realmente se esforçado para parecer positiva e carismática. Pelo contrário. Ofendia os leitores de forma direta, brutal. Contra eles, lançava mão de ofensas até então nunca vistas num jornal diário de boa circulação (a tiragem do Correio era de cerca de 15 mil exemplares nos dias de semana; aos domingos, esse número subia para 30 mil). Para provocar o leitorado, Hilda chegou a criar uma sequência de bordões inesquecíveis: “Informe-se!”; “coitaaaada!”; “machucou-se?”; “escandalizou-se?”; “boa missa”. Ela realmente sabia ser cronista.
Numa crônica em que repassava aos leitores uma série de “receitas antitédio”, Hilda aconselhava a todos que se matassem com uma pedrinha de cânfora na boca, para que partissem “com olorosas lembranças”. Em outra discorria sobre as vantagens de ser banguela na hora de praticar o sexo oral. Hilda também dizia que Jesus não nos tinha salvado de nada. Que era culpado pela sedução de doze homens. Que se Deus fosse bom, Cristo teria reencarnado num corvo. Que o esperma é um ranho, e que poderia ser servido aos gatos em cuias de jade. Que o espírito natalino é um saco preto. Que o Brasil é um gigante adormecido de fiofó exposto. Que envelhecer é o mesmo que morrer. Que tudo é uma grande cagada metafísica. Que a genitália das lhamas é delicada e perfeita como a das fêmeas humanas. Que os seres humanos só são todos iguais “na rodela”.
Impossível ler esses textos, hoje, sem imaginar que tipos de sentimento despertavam nos leitores. Não é necessário ter trabalhado num jornal, ou mesmo ter sido cronista de um, para saber que discursos dessa natureza podem provocar a demissão de seu autor. Principalmente se houver pressão de assinantes ou anunciantes mais sensíveis. A se crer no que escrevia a autora, os leitores a odiavam. Telefonavam para o “eufórico editor” do Caderno C e a acusavam de “nojenta, sórdida, louca”. Hilda respondia à sua maneira. Parafraseando Nelson Rodrigues, dizia que era uma mulher normal, “gostava de ser maltratada”. Que estava “inteirinha à venda”: “Comprem meu dedo mindinho, ou minha rodela, fui sempre casta nesta escatológica e escura fundura, ou comprem o meu abismo de ser e de ter sido, (...) minha boca aberta, (...) comprem minhas frases”. Reclamava de quando recebia elogios, não era bom para a “vitimologia” que há tanto tempo vinha construindo, com “esmero, acuidade e pertinácia”. Desafiava: “Me chamem de bisca por falar a verdade”. Alegava já ter até pedido demissão, o Correio Popular é que não aceitava: suas crônicas ajudariam a vender o jornal.
O “eufórico editor” a que Hilda se referia é Jary Mércio, que capitaneava o recém-criado Caderno C nos anos 1990, e que hoje, depois de um tempo afastado de Campinas, coincidentemente ocupa o mesmo cargo. Segundo ele, a recepção à coluna de Hilda Hilst era “morna”. “O leitor campineiro é orgulhoso, ou ao menos era, na época, porque agora tudo mudou”, diz Mércio. “É claro que muitos se incomodavam com as coisas que ela escrevia, com os palavrões que disparava contra Deus, o homem, as instituições, os leitores, contra ela própria, contra tudo. Mas quase ninguém chegava ao ponto de escrever para o jornal, para reclamar. Houve casos, sim, de telefonemas clamando por censura, mas a gente percebe quando se trata daquele ‘leitor errado’, que caiu de paraquedas naquelas páginas que não costuma frequentar, e justamente no dia da publicação da crônica da Hilda.”
Mércio conta que quase nenhuma dessas reações chegava até a cronista, pois não faria sentido informá-la a respeito. Às vezes, porém, ele lhe passava um resumo geral dessas “repercussões raivosas”, só para a autora “ter a certeza de que tinha público”. De todo modo, o jornal jamais teria pensado em censurá-la, garante. “Nunca houve um pedido a ela para que evitasse isso ou aquilo, para que moderasse a linguagem. E nem seria possível: na mesma hora, Hilda encerraria sua colaboração.”
Todos os assuntos relativos à publicação de suas crônicas, a cronista tratava diretamente com seu editor, exceto sua remuneração. “Embora ela ‘gostasse’ de falar desse assunto comigo também”, diz Mércio, que acredita que Hilda escrevia suas crônicas unicamente por causa do pagamento. “Ela já estava com dificuldades para se manter, mesmo dentro dos padrões modestos em que vivia. Por outro lado, nunca me pareceu que tivesse algum contentamento especial por estar escrevendo no jornal. Ela escrevia porque precisava, acho. Era uma trabalhadora.”
O que não teria prejudicado em nada a qualidade de suas crônicas. “Hilda estabeleceu uma comunicação silenciosa, falando à alma de uma legião de leitores inteligentes, sensíveis, muitos deles cultos, e que compartilhavam das mesmas angústias da grande poeta.” Para o editor, isso pode ser chamado de “sucesso”. “Mas é uma grandeza que não pode ser expressada em números, não é palpável. E lamentavelmente nunca pode ser traduzida em dinheiro.”
Jary Mércio ainda lembra que Hilda Hilst, ao conversar com ele, quase sempre tentava lhe vender um lote da sua Casa do Sol. “Ela era uma ótima vendedora, o problema é que eu era um péssimo comprador”, brinca.
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As crônicas que Hilda Hilst produziu para o Correio Popular estão reunidas na antologia Cascos & Carícias. Uma terceira edição da obra, revista e ampliada, acaba de sair pela Nova Fronteira.