Ilustra tradução Mansfield VitorFugita

Katherine Mansfield (1888-1923) foi uma autora neozelandesa cuja obra, para alguns, realmente revolucionou a arte do conto. Sua literatura marcou profundamente a escrita de nomes como Ana Cristina Cesar, que não só a leu, mas também conviveu intimamente com seus textos, estudou e traduziu a Mansfield para o português. Clarice Lispector também foi muito tocada pela escrita de KM, sobretudo por suas cartas: “não pode haver uma vida maior que a dela e eu não sei o que fazer simplesmente”, teria dito ela, segundo a crítica Nádia Batella Gotlib.

As cartas aqui traduzidas são de uma escritora – é preciso marcar o peso desta palavra: escrita. Mansfield, quando escreve cartas, não apenas se comunica. Por um lado, sim, a carta busca encontrar alguém distante e passar uma mensagem ora mais objetiva, ora mais ampla. Por outro lado, nas mãos de uma escritora, a carta alcança cantos muito mais enigmáticos. Katherine cria arranjos ousados, experimenta um estilo diferente para cada destinatário e consegue expressar aquilo que, na escrita epistolar, está livre das censuras e das amarras editoriais. Quando escolhi traduzir as cartas, a princípio, o que eu via era só um texto interessante, ainda pouco explorado, ainda não totalmente traduzido. Eu via escolhas linguísticas ousadas e queria traduzi-las – era uma visão bastante inocente. O que se desdobrou foi inesperadamente ansioso, tocante, intenso – ignorava, antes, que ali tinha um envelope corrompido, que eu tocava um objeto particularmente polêmico. Agora não ignoro mais; lembro do envelope, toda vez, eu juro. Suponho o gesto que abre a carta lentamente, suponho o frio ou o calor ou aquilo que o destinatário segurava em suas mãos exatamente antes de abrir a carta. É um objeto muito delicado – ele quer atravessar. Quando lemos as cartas de Mansfield, o que en- contramos ali – para além das reflexões sobre arte, vida, escrita e mulher – é um aceno à sua literatura, um gesto daquilo que conhecemos como sua prosa afiadíssima, uma voz muito solta e muito potente.

Aqui, lemos trechos de três cartas nas quais Mansfield mostra um pouco de sua preocupação com a técnica, com a arte e com a escrita. Mas o que se lê, sobretudo, é um presente: um pouco mais da escrita de Katherine Mansfield.

PARA SYLVIA PANE [nota1]
30 Manchester Street W.
Londres
24 de junho, 1906

Minha vida passou por uma grande transformação desde a última vez que te vi. Papai é extremamente contra meu desejo de me tornar uma violoncelista profissional ou de levar o violoncelo a um alcance maior – então minha esperança de ter uma carreira musical se foi completamente. Uma decepção terrível – não consigo te dizer como me senti – e como me sinto agora quando penso nisso – mas suponho que não há razão nessa terra para lutar contra o Inevitável – então no futuro vou dedicar todo o meu tempo à escrita. Há ótimas oportunidades para uma garota na Nova Zelândia – tanto tempo e silêncio – e temos um pequeno e perfeito “chalé à beira mar” onde pretendo passar boa parte do meu tempo. Você também ama a solidão como eu amo? – especialmente quando estou nesse writing mood – e você vai estar – também. Escreva, quero dizer, no Futuro. Tenho certeza de que você seria maravilhosamente bem-sucedida.

PARA GARNET TROWELL [nota2]
Beauchamp Lodge
Wawrick Crescent, Londres
2 de novembro, 1908

Tenho uma ambição estranha – tenho já há anos – e agora, de repente, aqui está revivida – de uma maneira diferente – e aparece batendo ansiosa à minha porta – Escrever – e recitar o que eu escrevo – de uma maneira muito elegante – você sabe. Você sabe exatamente o que quero dizer. Revolucionar e reviver a arte da eloquência – levá-la ao seu próprio patamar – Nada me ofende tanto quanto o declamador convencional – rígido – artificial – constrangido – mas há um outro lado – o lado da arte. Um palco escuro – uma imensa – alta cadeira de carvalho – flores – uma luz fraca – uma mesa baixa cheia de livros curiosos – e usar um vestido simples e maravilhosamente colorido. Sabe? Então estudar os efeitos do tom na voz – jamais confiar no gesto – ainda que o gesto seja uma outra arte e deva ser irrevogavelmente ligado a ela – e expressar na voz e no rosto e na atmosfera tudo o que se diz. O tom será meu segredo – cada palavra uma variação de tom – me lembro uma vez de escutar uma mulher dinamarquesa com um violinista num recital no Elion Hall, mas era convencional & não nesses termos – ainda assim era elegante – Bom, eu gostaria de fazer isso – e isso está em minhas mãos porque eu sei que possuo o poder de envolver as pessoas. Gostaria de ser uma Maud Allen[nota3] dessa arte – o que você acha? Me escreva sobre isso – sim? Sabe – eu poderia então escrever só aquilo que sinto que me cai bem – e poderia popularizar meu trabalho – e sinto também que há uma grande abertura para algo sensacional e novo nessa direção

DOROTHY BRETT [nota4]
141 A Church Street Chelsea, Londres
11 de outubro, 1917

Faz um frio cortante – consigo ver o sol voando no céu como uma bandeira levitando lá longe. Minha boneca japonesa pôs botas de inverno e o estúdio tem cheiro de marmelo. Tenho que escrever o dia inteiro com meu pé na beira da lareira – e ah, que desgraça! Como é triste pensar que estarei aquecida na frente e fria nas costas de agora até junho. Me parece tão absolutamente perfeito que você esteja pintando natureza morta agora. O que fazer, frente a esse maravilhoso desarranjo de frutas redondas e brilhantes, a não ser juntá-las e brincar com elas – e tornar-se elas, digamos. Quando passo pelas vendinhas de maçã não consigo não parar e encarar até sentir que eu, eu mesma, estou virando uma maçã também – e que a qualquer momento posso produzir uma maçã, milagrosamente, de dentro do meu próprio ser como o mágico que tira um coelho de sua cartola. Quando você pinta maçãs você sente que seus peitos e seus joelhos se tornam maçãs também? Ou você acha que isso é o maior absurdo? Eu não acho. Tenho certeza de que não é. Quando eu escrevo sobre patos eu juro que sou um pato branco de olho redondo, flutuando sobre um lago com bordas amarelas e disparando de repente até o outro pato de olho redondo, que flutua de cabeça para baixo à minha frente. Na verdade todo esse processo de me tornar um pato (o que Lawrence [nota5] chamaria, talvez, de “consumação do pato ou da maçã”), é tão arrebatador que mal posso respirar, só de pensar nisso. Ainda que a maioria das pessoas só consiga chegar até aí, é apenas o “prelúdio”.[nota6] Então chega o momento em que você é mais pato, mais maçã, mais Natasha do que esses objetos poderiam ser, então você cria esses objetos do zero. Mas é por isso que eu acredito na técnica, também (você me perguntou se eu acreditava). Sim, simplesmente porque não vejo como a arte pode dar aquele salto divino para dentro da barreira que contorna as coisas, se não passou pelo processo de tentar se tornar essas coisas antes de recriá-las.

[...]

Lancei meu queridinho aos wolves[nota7] e eles o comeram e me serviram de volta tantos elogios num prato tão dourado que não pude deixar de me sentir grata. Não achei mesmo que eles fossem gostar, e ainda estou chocada com isso. Qual é o formato? Você me pergunta. Ah, Brett, é tão difícil dizer. Até onde eu sei, é mais ou menos minha própria invenção. E como eu criei esse formato? Isso é tudo o que eu posso dizer sobre isso tudo. Sabe, que a verdade seja dita – eu tenho uma paixão perfeita pela ilha onde nasci.

[...]

Bom, lá de manhã bem cedo eu sempre me lembro de sentir que essa pequena ilha teria mergulhado de volta para o escuro azul do mar durante a noite, apenas para emergir de novo no raiar do dia, toda coberta de lantejoulas coloridas e gotas brilhantes de água – (Ao correr sobre o orvalho na grama era possível sentir que os pés definitivamente provavam o gosto do sal). Tentei agarrar aquele momento – com um pouco do seu lampejo e do seu sabor. E assim como naquelas manhãs a bruma esbranquiçada levantava e revelava uma beleza descoberta, depois sufocava essa beleza e depois a desvelava outra vez. Eu tentei afastar essa bruma do meu povo e fazer com que eles fossem vistos e depois escondê-los outra vez... É tão difícil descrever tudo isso e soa talvez superambicioso ou banal. Mas não sinto nada a não ser o intenso desejo de trabalhar os meus assuntos da melhor maneira possível – mas o êxtase indescritível desse universo das artes. Incomparável! E o que mais se pode desejar? Não é o caso de manter a chama de casa queimando fortemente para mim. É o caso de manter a chama de casa baixa até um brilho respeitável e pequeno o suficiente. Se você não vier me ver em breve não terá nada além de um pequeno monte de cinzas e duas canetas cruzadas sobre ele.

NOTAS

[nota1] Sylvia Pane era prima de Mansfield – elas frequentaram o colégio juntas em Londres.

[nota2] Garnet Trowell era o filho do professor de violoncelo de Katherine Mansfield. Eles mantiveram uma relação afetiva em 1908, forçadamente separada pelos pais da escritora.

[nota3] Maud Allen (1873-1956) foi uma dançarina e coreógrafa que executou o que chamou de “configurações de humor musicalmente impressionistas”. Nascida em Toronto (Canadá) e criada em São Francisco (EUA), Allan estudava piano na Alemanha quando abandonou o instrumento para desenvolver seu jeito muito pessoal de se movimentar – uma forma de arte que não associava diretamente à dança.

[nota4] Dorothy Brett era estudante de Artes quando Katherine a conheceu. Foram grandes amigas. Esta carta, ao contrário das demais aqui publicadas, não é inédita em português – fora lançada em Diário e cartas (Revan, 1996) – e nestas páginas segue outra proposta de tradução para a missiva.

[nota5] D. H. Lawrence (1885-1930) foi um romancista e poeta inglês, amigo de Katherine Mansfield.

[nota6] Prelude (Prelúdio) é o título de um conto de Mansfield publicado pela primeira vez em 1918 pela Hogarth Press, editora de Virginia e Leonard Woolf. Aqui, a autora parece jogar com o sentido do título do conto (prelúdio, o início, o prefácio) e a sensação que apenas se anuncia a partir das imagens que ela descreve anteriormente, como se dissesse: “isso é apenas o começo”.

[nota7] O “queridinho” a que Mansfield se refere é seu conto Prelude. Wolves são a família Woolf – Virginia e Leonard, da Hogarth Press. É claro que, a partir desse plural (wolves é plural de wolf), a frase pode ser lida também como “lancei meu queridinho aos lobos” (wolves), que em inglês é uma expressão para rendição, um ato de sacrifício; como se o texto tivesse sido lançado para predadores (os editores?) que irão agora deter o texto, o queridinho, e fazer dele o que bem quiserem. É uma crítica bem pouco sutil, mas bastante sofisticada que Mansfield parece tecer sobre os editores (não especificamente os Woolfs, mas os editores em geral), dado que lemos, em suas cartas, uma repetição de cenas de disputas editoriais. Na sequência, ao descrever que os editores teriam “comido” o texto, ela reforça essa metáfora da relação autor-editor como uma disputa por um objeto, ou como uma dinâmica simplesmente feroz.