Traducao 1 Guilherme de Lima julho.21

 


ESCRITO NUM GUARDANAPO

Um brinde, camaradas,
e antes de tudo peço que me perdoem
por cruzar, sem permissão e sem compostura,
as portas da emoção:
nosso irmão, de tão distante país,
nossa filha saída das entranhas, menina dos nossos olhos,
fundam sua nobre casa sobre firme pedra.
Filhos do povo,
comunistas os dois,
escutaram a voz fulminante do coração.
A alegria também é revolucionária, camaradas,
como o trabalho e a paz.
Casamento de flores vermelhas, um viva para eles!
Muito amor um ao outro!
Sempre fiéis e mutuamente se apoiando
nos darão uns filhos lindos
(já digo isso pedindo perdão)
que muito iluminarão os primeiros dias de maio.
É que a partir de agora
cada um é um camarada
multiplicado por dois.
Isso é tipo falar
do lado prático do romance.
Comamos e bebamos, camaradas.


COMO TU

Eu, como tu,
amo o amor, a vida, o doce encanto
das coisas, a paisagem
celeste dos dias de janeiro.

Também o meu sangue ferve
e rio com os olhos
que conheceram o brotar das lágrimas.

Eu creio que o mundo é bonito
e que a poesia é como o pão: de todos.

E que minhas veias não terminam em mim
mas sim no sangue coletivo
dos que lutam pela vida,
pelo amor,
pelas coisas,
pelas paisagens e pelo pão,
pela poesia de todos.


PARA UM AMOR MELHOR

Ninguém duvida que o sexo
é uma categoria no mundo dos casais:
dele sai a ternura e seus galhos selvagens.

Ninguém duvida que o sexo
é uma categoria familiar:
dele saem os filhos
as noites em comum
e os dias divididos
(ele, indo buscar o pão nas ruas
nos escritórios ou nas fábricas;
ela, na retaguarda dos ofícios domésticos,
na estratégia e tática da cozinha
que permita que sobrevivam à batalha comum
de ao menos chegar ao fim do mês).

Ninguém duvida que o sexo
é uma categoria econômica:
basta falar no trabalho sexual
nas modas,
nas seções dos jornais que são dedicadas ou às mulheres
ou aos homens.

Os embates começam quando
uma mulher diz
que o sexo é uma categoria política.

Porque quando uma mulher diz
que o sexo é uma categoria política
pode começar a deixar de ser uma mulher em si
para se tornar em uma mulher para si
constituir uma mulher em mulher
a partir de sua humanidade
e não a partir de seu sexo
saber que o desodorante mágico com cheirinho de limão
e o sabão que voluptuosamente acaricia sua pele
são fabricados pela mesma empresa que fabrica o napalm
saber que os trabalhos típicos de uma casa
são os trabalhos próprios da classe social à qual essa casa pertence
que a diferença entre os sexos
brilha muito mais na profunda noite amorosa
quando se conhece todos esses segredos
segredos que nos mantinham mascarados e alienados.


MINUTA

Em nome de quem lavam a roupa alheia
(e expulsam da brancura sujeira alheia)

Em nome de quem cuidam de filhos alheios
(e vendem sua força de trabalho
em forma de amor maternal e humilhações)

Em nome de quem moram em casa alheia
(que já não é ventre amoroso mas sim cova ou cárcere)

Em nome de quem comem restos alheios
(e ainda os mastigam se sentindo ladras)

Em nome de quem vivem num país alheio
(as casas e as fábricas e as lojas
e as ruas e as cidades e os povoados
e os rios e os lagos e os vulcões e os morros
são sempre dos outros
e é por isso que a guarda civil e a polícia estão lá
para protegê-los de nós)

Em nome de quem o único que têm
é fome exploração doenças
sede de justiça e de água
perseguições condenações
solidão abandono opressão e morte

Eu acuso a propriedade privada
de nos privar de tudo


TERCEIRO POEMA DE AMOR

Há quem diga que nosso amor é extraordinário
porque há nascido em circunstâncias extraordinárias
diga a eles que lutamos precisamente
para que um amor como o nosso
(amor entre companheiros de combate)
venha a ser em El Salvador
o amor mais comum e banal
quase o único.


AÍDA, FUZILEMOS A NOITE

Aída, fuzilemos a noite
e a terrível
miséria coletiva.
Aqui temos essas quatro mãos
e temos a minha voz.
Nos respaldam teus olhos
e tua suave
maneira de seguir me amando.
Nos respalda esse sangue projetado
no corpo de nosso filho.
Nos respalda essa atmosfera,
esse pão cotidiano
e essas quatro paredes
que tutelam nossos beijos.
Rompamos, Aída, esse tormento amargo.
Temos que costurar lenços feitos de estrelas
para secar as lágrimas das pessoas.
Temos que levar o filho
até sua antiga música.
Temos que voltar a fabricar brinquedos
e temos que plantar milho nas cidades.
Temos que dinamitar os arranha-céus
e dar lugar para nascer o trigo.
Temos que fazer instrumentos da lavoura
com os ônibus urbanos.
Aída, fuzilemos a noite
e esta horrível bandeira.
Aída, fuzilemos a noite
e os negros canhões
e as bombas atômicas;
fuzilemos o ódio
e a terrível
miséria coletiva.

 

Traducao 2 Guilherme de Lima julho.21



[NOTA] FALAR SOBRE O LADO PRÁTICO DO ROMANCE

Nascido em 1935 em El Salvador, Roque Dalton foi um poeta, jornalista e militante político, que publicou 13 livros de poesia, um testemunho autobiográfico, três peças de teatro e um romance, além de diversos contos, textos críticos e ensaios.

Apesar de ser uma estrela literária no seu país natal, o poeta é quase desconhecido no Brasil. Quem foi, então, Roque Dalton? Nas palavras de seu filho Juan Jose, ele foi o mais salvadorenho dos salvadorenhos: “Não havia momento em que meu pai não estivesse comentando e sentindo saudade das coisas de El Salvador. Sentindo saudade e sofrendo por seus compatriotas. Se há um protótipo de salvadorenho no mundo, não tenho dúvida que este protótipo é Roque Dalton. Um salvadorenho com muita vida, com muita alegria, com muito brilho e humor, mas também triste pelas coisas que seu povo passava”.

Sentir saudade era quase o modus operandi de Dalton: de estudante estrangeiro no Chile a duas vezes preso político em El Salvador e depois exilado político em diversos países (tendo passado por Guatemala, Cuba e países da União Soviética), não houve lugar onde o poeta deixou de se preocupar com e de sentir falta de seu país natal.

Mas apesar da nostalgia, Dalton também não deixou de se misturar às lutas das classes trabalhadoras locais, por onde quer que ele tenha passado. Em entrevista ao também poeta Mario Benedetti, em 1969, Dalton diz: “Me parece que para nós, latino-americanos, chegou o momento de estruturar o melhor possível a questão do comprometimento. No meu caso particular, considero que tudo o que escrevo está comprometido com uma maneira de ver a literatura e a vida, a partir de nosso maior dever como seres humanos: a luta pela liberação de nossos povos”. Essa fricção entre solidariedade internacionalista e um patriotismo crítico e anti-imperialista produzia as faíscas necessárias para a sua luta, mas sobretudo para sua escrita.

Dalton foi executado em 10 de maio de 1975, 4 dias antes de completar 40 anos, que também vem a ser dia das mães em El Salvador. Deixou a viúva, Aída — a quem o último poema desta página é dedicado — e três filhos (sendo que um deles, Roque Antonio, foi assassinado ainda criança, durante um conflito armado contrainsurgente). Como outros poetas comunistas assassinados antes dele, a exemplo de Federico García Lorca, os restos mortais do salvadorenho também nunca foram encontrados.

Dalton deixou claro, no decorrer de sua vida, que chegou à revolução por meio da poesia e da arte — contrariando os cínicos (para não dizer xenófobos), que reclamam da existência de uma esquerda “cirandeira”. Ele também nunca teve vergonha de defender que a alegria é um dos elementos primordiais da luta política. Assim, escolhi traduzir alguns dos poemas de amor de Dalton porque, para ele, a construção da revolução é uma coisa tão imprescindível quanto o amor romântico e a safadeza crítica.

Nada que preste existe sem paixão e Dalton deixava isso pulsar em cada uma de suas linhas. A disputa política é uma disputa pela vida e a poesia deve ser, consequentemente, um instrumento dessa luta. O “delírio comunista” de Dalton era a possibilidade de viver num mundo sem antagonismo entre campo e cidade, com água limpa, comida no prato, acesso à arte, saúde e educação, serviços públicos e gratuitos de qualidade; um mundo onde o trabalho de cuidado não é mais tarefa exclusiva de um gênero, mas de todas as pessoas; um mundo sem medo de alugueis e senhorios, sem o medo de despejos, estupros, assassinatos e prisões políticas. Para Dalton, que era ao mesmo tempo marxista e cristão, a promessa do Paraíso era o direito à felicidade humana na Terra e isso não era nenhum delírio: era apenas o começo!