Mano Brown | Foto: José de Holanda
Em 2014, a Georgia Regents University, nos Estados Unidos, abriu o curso “Good kids, mad cities”, uma disciplina que tinha o recém-lançado álbum good kid, m.A.A.d city (2012), do rapper Kendrick Lamar, como ponto de partida para estudos e discussões literárias que englobavam ainda os clássicos de James Joyce, James Baldwin e Gwendolyn Brooks. Quatro anos depois da surpreendente notícia, Lamar, então com 32 anos, voltou aos holofotes da crítica cultural ao vencer o prestigioso prêmio Pulitzer pelo álbum DAMN., elogiado pelo júri por sua “autenticidade vernacular” que “captura a complexidade da vida afro-americana moderna”. A princípio, tamanha celebração em torno da lírica vinda dos guetos afro-americanos pode ser animadora — especialmente, quando a comparamos com o cenário brasileiro, onde um artista como Mano Brown só recebeu um título de Doutor Honoris Causa em 2023, aos 53 anos de vida e mais de três décadas de carreira. Por outro lado, um olhar mais exigente nos mostra uma captura estratégica da arte negra na era do capitalismo de representatividade.
Em 2004, Sig Gissler, administrador do Pulitzer, anunciou mudanças na premiação a fim de “alargar” o escopo dos eleitos. A categoria de música, em específico, era alvo de críticas sistemáticas e vivia uma crise ainda pior desde que, no ano anterior, o compositor de música clássica John Adams reagiu com ironia ao ser premiado. Na ocasião, o norte-americano afirmou que, nos últimos 50 anos, muitas das “maiores mentes musicais do país” foram “ignoradas pelas preferências acadêmicas do júri”. Note-se que apenas em 1997 um artista de jazz foi contemplado pelo Pulitzer e somente em 1996 um artista negro foi reconhecido. Deste modo, o gesto do Pulitzer indica mais reposicionamento de marca, buscando-se manter relevante e atrativo ao público e patrocinadores, do que um certificado de mérito a Kendrick Lamar ou de reconhecimento do valor artístico do rap.
Do mesmo modo, o curso sobre good kid, M.A.A.d city nos mostra problemas mais complexos sob o véu de suas boas intenções. Em entrevista ao USA Today, o professor Adam Diehl explicou que decidiu organizar o curso a partir do álbum de Lamar devido às muitas questões sociais que a obra aborda, descrevendo o hip-hop como “a mais jornalística forma de arte na cultura pop”. Em outras palavras, a obra de Lamar é celebrada pelo seu aspecto de espelho de um cenário social, pela sua capacidade de “retratar a realidade” — e não pela sua potência de inventar, especular, incitar a imaginação. Aos olhos do acadêmico branco, as letras do rap não são vistas como uma proposição estética e formal, mas, sim, como um recorte objetivo e concreto da materialidade sustentado por um determinismo racial de fundo. O preto retrata a realidade, enquanto a abstração, a imaginação e a criatividade tornam-se um privilégio da branquitude e da sua suposta neutralidade identitária.
O esvaziamento das complexidades artísticas para enclausurar a imaginação negra sob uma ideia de relato social da realidade não está restrito ao rap. Em 2017, em uma cerimônia de homenagem a Carolina Maria de Jesus na Academia Carioca de Letras, o professor Ivan Proença não teve o menor pudor ao afirmar que os escritos da autora, uma mulher negra e favelada que trabalhava como catadora de papel, “não é literatura (…) Isso pode ser um diário e há inclusive o gênero, mas, definitivamente, isso não é literatura”. Na sua lógica eurocêntrica, os “períodos curtos e pobres” de Carolina não construíam imagens poéticas na mente do leitor, uma vez que ela “não era capaz de fazer orações subordinadas”. Assim, a obra de Carolina de Jesus teria valor apenas enquanto relato ou testemunho — e nunca como experimentação artística ou literária. Com isso, o esforço imaginativo de Carolina é escamoteado e a sua condição social, sua negritude, tornam-se determinantes na interpretação e valoração do seu trabalho. Na espiral transversal do tempo, o seu corpo de mulher negra é que volta a ser mercadoria em um reencenação escravista para o mercado editorial. Sua obra é, novamente, seu corpo. Na música Imortais e Fatais (2017), Baco Exu do Blues sintetiza o paradoxo de forma cortante: “Meus ancestrais todos foram vendidos/ Deve ser por isso que meu som vende”.
Imergir na literatura rap demanda, antes de tudo, ultrapassar o senso comum do rap como uma “mensagem” consciente, determinada e com finalidades pré definidas. Afinal, o rap é, em sua gênese, movido pelo princípio da fuga e dos furtos nos confins — a reapropriação de oralidades estrangeiras, passando pelo sampleamento irrestrito dos discos da indústria fonográfica até a invenção de novos métodos de produção musical, como os toca-discos que se tornaram instrumentos musicais. Em vez de pensar aquilo que o rap retrata, passamos a perseguir aquilo que o rap inventa, provoca e incita em movimentos polissêmicos deslizantes, códigos de ética e de sobrevivência. Em Menor magrinho, o MC Kyan celebra a sua vitória sobre os estigmas sociais e o sucesso como artista: “Discriminado no preconceito/ Hoje o pós-conceito é nós”. Ao mesmo tempo, o verso ganha força como uma crítica à branquitude e à colonialidade e àquilo que é reconhecido como “pensamento” por este sistema. “A negritude nasce de um sentimento de frustração dos intelectuais negros por não terem encontrado no humanismo ocidental todas as dimensões de sua personalidade”, descreve o antropólogo Kabengele Munanga. Em protesto semelhante, Kyan cria o seu próprio modo de ação no mundo, rompendo com o entendimento rígido dos conceitos da filosofia para firmar um pensamento-ação, um “pós-conceito” que se origina e cresce pela perspectiva do negro e favelado brasileiro.
Mais do que simplesmente representar o cotidiano das periferias através de crônicas, o rap é um vetor que vai dar forma à emergência de uma subjetividade periférica que inverte o discurso hegemônico sobre a periferia: não só um lugar de violência e pobreza, mas de possibilidades, potência e cultura. Os moradores de periferia batem no peito e assumem a favela de modo político para, através do som e da palavra, do ritmo e da poesia, confrontar coletivamente as lógicas de exclusão, dando vazão a uma série de pontos de vista silenciados pelos discursos oficiais. Nasce, assim, uma linguagem outra. Ginga e fala gíria — gíria não; dialeto!
Perceba, por exemplo, a complexa rede de imagens e símbolos elaborada por Nega Gizza em seu álbum Na humildade (2000), ao narrar existências de “contramão” — ideia evocada pela MC nas faixas Depressão e Prostituta e que descreve as vidas em contínua resistência à tendência de violência e desumanização imposta aos favelados. Em Prostituta, a rapper carioca contrasta religião, sexo, crime e dinheiro e os insere diretamente no DNA do “povo brasileiro”:
Sem carteira vou guiando, sentido contramão
Artigo cinco nove lei da contravenção
Vou despertando a libido de um velho ou de um menino
Considerada aqui na zona a rainha do erotismo
Santo Agostinho é o meu santo protetor
Contradição é minha marca na reza e na dor
Sou o retrato três por quatro desse povo brasileiro
Sou a ausência do amor com a presença do dinheiro
Colocando em conflito a moralidade e os costumes da elite, o rap de Nega Gizza revira as vísceras do Brasil ao apontar uma organização social genocida que opera com tecnologias oriundas da escravidão e da ditadura continuamente apontadas para a cabeça do povo negro. Ao colocar nas mesmas linhas a fé em Santo Agostinho e a libido de um menino, mostra que não há choques entre esses elementos aparentemente opostos — assim como a tragédia racial brasileira (e global) não é um mero acidente, uma causalidade fora da curva, mas, sim, um projeto nacional de gerenciamento da violência. Tudo faz parte dessa dinâmica violenta que constitui o próprio Brasil enquanto Estado, das origens aos dias atuais. O grupo Facção Central, por exemplo, elabora este cenário com explicitude violenta: “Hoje Deus anda de blindado/ Cercado, protegido por dez anjos armados/ A pomba branca tem dois tiros no peito”.
Mas talvez o maior entendimento dessa configuração necropolítica brasileira tenha sido Sobrevivendo no Inferno (2000), quando o Racionais MCs apontou o massacre do Carandiru como o acontecimento decisivo da nossa época, sendo o “revelador da verdade maior do Estado brasileiro”, como descreve Acauam Oliveira no prefácio do livro que reúne as letras do álbum. Mas este diagnóstico profundo da configuração social nacional não teria a contundência (e a popularidade) que este álbum teve se não houvesse uma forma poética capaz de expressar tamanho horror e complexidade. Em Sobrevivendo, o Racionais MCs lapidou o seu discurso e suas narrativas de modo inédito em sua obra. Em suas primeiras músicas, o grupo exibia um ponto de vista reificado na visão de mundo dos próprios rappers, que, por um lado, se viam como superiores àqueles que estavam do lado de fora da comunidade (pois detinham a propriedade do lugar de fala) e, por outro, assumiam um tom de autoridade em relação à própria periferia, acusando-os de serem alienados e inertes.
Tudo mudou em Sobrevivendo no Inferno, onde o grupo constrói uma polifonia de vozes periféricas — muitas vezes dissonantes entre si — que investiga uma psicologia coletiva mais profunda. Em vez de críticas sociais imbuídas de certezas, a dúvida, as contradições, os conflitos internos passam à frente, como nas linhas de Fórmula Mágica da Paz:
Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá
Minha ideologia enfraqueceu
Preto, branco, polícia, ladrão ou eu?
Quem é mais filha da puta, eu não sei
Os Racionais passaram a explorar e dar forma a essa sensibilidade que surge na “fronteira do céu com o inferno”, construindo assim os seus “versos violentamente pacíficos”. Acauam Oliveira identifica neste trabalho uma “mudança de linguagem do professor autoritário para a do pastor-marginal”. Este processo, ele argumenta, transforma também a própria palavra, que adquire um valor poético-político na quebrada e da quebrada: “Seu objetivo maior é formar os sujeitos para a construção de uma ética comunitária que os permita viver a ‘vida loka’ — o estado geral de precarização das condições de existência marcadas pelo risco iminente e pela contingência — sem desandar, ou seja, permanecendo vivos”.
E ao mesmo tempo em que desmantela os mitos nacionais e falsas promessas de democracia racial, o rap trabalha para não se deixar cair na imobilidade do pessimismo ou se tornar refém do medo. Para o rap, depurar a esperança é um componente vital, uma vez que reacende o movimento e a caminhada certa orientada pelo bom proceder da malandragem. “Viver é melhor que sonhar”, cantou Belchior em uma das mais icônicas músicas da MPB. Décadas depois, o MC Cabelinho inverteu a máxima: “Viver é melhor que sonhar/ Mas eu sonho pra sobreviver”. O sonho é o motor da sua resistência, é uma de suas armas. “É necessário sempre acreditar que o sonho é possível”, sentencia Edi Rock em A Vida é Desafio. Entre as imagens de sobrevivência que reviram o Brasil e a formulação contínua do sonho como modelo dinâmico de resistência, o rap é um contínuo imaginar de caminhos novos e imprevistos.
GG Albuquerque é jornalista e doutorando em Comunicação na UFPE. Mantém o site Volume Morto e é cofundador do portal Embrazado.