A música e a poesia por vezes gostam de formar um matrimônio, mas preferem mesmo acasalar. Trata-se, assim, de um casal que, às vezes, gosta de viver em casas separadas, e até divorciado, mas nunca deixa de estar mantida, latente, a relação.
A multiartista estadunidense, chamada de “princesa do punk”, desperta paixões em seus fãs no mundo inteiro. Mas a sua maior paixão é Arthur Rimbaud. Há alguns anos ela comprou a casa de sua família nas Ardenas. Foi onde ele escreveu, ao menos em parte, Une saison en enfer. Smith quer reabri-la no futuro como residência artística para escritores e jovens poetas que se concentrem nos seus projetos. Tanto valor dado a um mestre da escrita não é por simples amor, e, sim, porque ela própria reconhece que é na literatura onde melhor se situa. Numa entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia (12-5-2023) afirmou:
“Sou uma artista, interpreto música e me sinto orgulhosa disso, mas não sou uma música, não penso como tal nem meu foco é a música. Eu me considero uma escritora, cheguei à música, ao rock and roll, através da poesia, foi assim que comecei. Alegro-me muito de que as pessoas gostem de minhas canções e venham aos meus shows, mas penso em mim como escritora, tenho 76 anos e, à medida que envelheça provavelmente passarei a maior parte do tempo escrevendo, assim é como gostaria de viver meus últimos dias”.
Patti Smith lançou sua própria versão de Une saison en enfer. Sua “relação” com o autor desse livro é antiga. Começou aos 16 anos de idade. Ela é quem conta, neste trecho do livro Só garotos:
“Meus poucos camaradas haviam se mudado para Nova York para escrever poesia e estudar artes e eu me sentia muito sozinha. Encontrara alívio em Arthur Rimbaud, com quem havia deparado em uma banca de livros do outro lado da rodoviária de Filadélfia quando tinha 16 anos. Seu olhar arrogante me encarou da capa de Illuminations. Ele possuía uma Inteligência irreverente que me acendera, e tomei-o por um compatriota, um parente, e até um amor secreto. Sem ter os 99 centavos para comprar o livro, surrupiei-o”.
Esse caso de amor de Patti Smith com Arthur Rimbaud já dura 60 anos.
Comprar a casa da família do poeta em Roche (cercanias de Charleville-Mézières), em 2017, foi apenas um gesto entre tantos de sua constante homenagem a ele.
Para marcar os 150 anos da primeira edição de Une saison en enfer, a Gallimard encomendou a ela algo especial. Uma reedição mais do que ampliada dos oito poemas em prosa que compõem Une saison. O livro passou a integrar a coleção ilustrada Blanche, que reúne artistas contemporâneos. Periodicamente, eles são convidados a inventar, ao seu bel-prazer, numa obra literária.
A Saison de Rimbaud-Smith compõe-se, além dos poemas, de desenhos, cartas, fotos, escritos... Uma antologia pessoal torna ainda mais rara essa obra: os poemas de Rimbaud que mais a estimularam e inspiraram, ao longo do tempo. Ela entende Rimbaud como um adolescente que viu e rejeitou todos os espelhos, lutou contra todos os demônios, desmascarou todos os anjos e se tornou o profeta dos tempos modernos e ultramodernos.
Patti Smith e Arthur Rimbaud representam um caso extremo de afinidade eletiva, de amor, de filiação espiritual e comunhão poética, que ela compartilha com Bob Dylan. Sua edição de Une saison é um convite à leitura e, sobretudo, às muitas releituras que suscitam esse livreto.