Em 1990, durante uma entrevista à TV Cultura, Hilda Hilst afirmou que seu livro recém-lançado, O caderno rosa de Lori Lamby, foi amplamente considerado repugnante, e essa reação foi exatamente a que ela pretendia provocar. A partir desse ponto, ela iniciou seu projeto de literatura pornográfica, que nasceu como uma forma de escárnio ao mercado editorial brasileiro. A obscena senhora D (1982) é uma das principais fontes de inspiração para a autora mineira Bruna Kalil Othero (nascida em 1995), que, na literatura contemporânea, coninua a explorar o projeto da pornocracia.
Seus mais recentes livros de poesia, Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas (Editora Letramento, 2019) e Tinha um Pedro no meio do caminho (ainda inédito), receberam reconhecimento ao vencerem dois prêmios do Ministério da Cultura. O primeiro prêmio homenageou obras relacionadas aos 100 anos da Semana de Arte Moderna, enquanto o segundo aos 200 anos de independência do país, ambas datas celebradas em 2022. Agora, a Companhia das Letras apostou no talento da escritora ao lançar seu romance de estreia, O presidente pornô (2023).
O Brasil, visto como imagem artística, já foi objeto de dois de seus livros de poesia, permeia sua tese de doutorado e agora é refletido a partir de múltiplos ângulos n’O presidente pornô. São projetos ambiciosos, mas que têm lhe rendido uma projeção nacional cada vez mais forte. O que alimenta essa sua tara pelas questões nacionais?
Primeiro queria agradecer a você, Felipe, e ao Suplemento Pernambuco, pelo espaço, a atenção e o respeito com o meu trabalho. Vamos ao tesão pelo Brasil. Gostei que você usou essa palavra suja, tara, e tão brasileira no uso que fazemos dela. Sou mesmo uma tarada pelo Brasil. Tenho esse desejo pulsante de pesquisar, ler, transar com a nossa história e a nossa cultura. O Brasil me fascina porque não é um país – é uma ficção. Uma experiência. Agora, morando fora, isso ficou mais evidente: levo o Brasil comigo, ele me denuncia estrangeira imediatamente. Está na minha língua e na minha bunda. Nem se quisesse poderia me dedicar a outra coisa, é inescapável. Mário de Andrade disse para um jovem poeta chamado Carlos, em carta de 1924: “agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil, é a minha razão de ser da vida”. Também tenho essa obsessão e esse ofício. As putarias que escrevo são pro Brasil, luz da minha vida, fogo da minha carne, caos das minhas entranhas. O Brasil se impôs no meu caminho como tarefa. E eu aceito.
Apesar de ser fruto de uma longa pesquisa sobre a república brasileira e seus períodos adjacentes, O presidente pornô não lê o Brasil pelo viés da respeitabilidade, mas, sim, da bandalheira, devassidão e baixeza. Poderia elaborar sobre a escolha de abordar esses temas com humor e profanidade, discutindo os principais objetivos e desafios dessa abordagem?
Sou uma escritora brasileira do século XXI. Isso define a forma que escrevo. Não dá pra pensar o Brasil com respeito e seriedade, muito menos no século em que estamos – casa dos memes, potência viva, produto de exportação e exemplo nítido da nossa identidade nacional. Fazer piada da própria desgraça faz parte de quem somos, um povo que só se fodeu, mas viveu pra contar a história. E é assim que contamos nossas histórias: com ironia, sarcasmo e devassidão. Com glitter e suor do sol & do trabalho. O Brasil pra mim sempre teve mais a ver com a banheira do Gugu do que com os golpes militares. Mas este país é as duas coisas, formou-se tanto da violência quanto da irreverência. E O presidente pornô é uma tentativa de abarcar tudo isso, numa forma que ilustrasse a nossa vida contemporânea: fragmentada, caótica, cheia de miséria e de piadas. Isso é muito desafiador, não sei se tive sucesso, quem vai dizer isso são os leitores. O Marco Nanini fala, na sua excelente biografia O avesso do bordado, escrita pela jornalista Mariana Filgueiras, que fazer comédia é muito mais difícil que fazer tragédia, apesar de todo mundo achar o contrário. O trágico já está posto na realidade, o duro é fazer bem o cômico. Também acho que o humor é algo muito importante pra saúde mental geral da nação.
O presidente pornô marca sua estreia no romance, mas, de forma ficcional, a narrativa faz alusão a uma peça de teatro. Valendo-se de uma estética do fragmento, seu livro também apresenta poemas, canções, reportagens jornalísticas, programas de TV, cartas e trechos de diários. Em termos imagéticos, você reúne o que há de mais popular no país. No entanto, essa operação estética cria um texto com ares de vanguarda, diferente de quase tudo que tem sido publicado pelas grandes editoras do país. Como você tem percebido a recepção da obra?
Isso é o que eu mais gosto do romance: é um gênero que comporta tudo (enfia que cabe mais!). Cabe conto, miniconto, crônica, poesia, teatro, diário, carta, entrevista, performance, reportagem, artigo científico, bula, relato, e isso porque falei só gênero escrito, também cabe imagem, som, corpo. E O presidente aproveita bem esse intercâmbio entre registros. Talvez por isso, ele está ganhando resenhas e comentários bem diversos, tem gente elogiando muito e tem gente falando que é o pior livro que já leu na vida. Recebi algumas críticas dizendo que uso muito cu, tudo é cu e cuzilhões de cu. Aí fiquei pensando qual seria o número ideal de cus para um livro. Mas parece que apenas um cu já é um excesso de cus. Sabe que eu gosto de ver esse tipo de comentário? Isso prova que a obra tem cumprido seu objetivo: incomodar. A literatura não tem nada a ver com o respeito, disse o Tabarovsky. O texto de gozo é o que nos faz entrar em crise na nossa relação com a linguagem, disse o Barthes. Quem tem cu tem medo, disse o Bocage.
Um dos aspectos que me parecem mais interessantes na sua produção é a forma como você manipula a materialidade do texto. Seu livro Carne (2019) foi literalmente servido como uma quentinha, o que produziu um flerte da sua literatura com as artes plásticas e a performance. O presidente e Tinha um Pedro no meio do caminho também apresentam uma diagramação onde a imagem gráfica convoca as palavras a performarem nas páginas. Quais são as suas inspirações na hora de produzir esses trabalhos intermidiáticos e por que você opta por eles?
Literatura é muito mais que só a palavra no papel. O Antonio Candido fala que literatura é toda criação de linguagem poética, ficcional ou dramática, e isso compreende desde os nossos sonhos durante o sono até fofocas na calçada, passando por catataus de 500 páginas e raps improvisados embaixo do viaduto. Um livro não é apenas o texto escrito, é também a capa, a lombada, a foto de orelha, a quarta capa, os blurbs, a ficha catalográfica, o colofão. Sempre dediquei muita atenção às apresentações visuais dos meus livros, e editores tanto na Letramento quanto na Companhia das Letras apoiaram muito minhas ideias e projetos nesse sentido. A foto de orelha, por exemplo, é sempre uma foto-performance: n’O presidente eu me montei de presidenta, em ensaio fotografado pelo Mauro Figa e produzido pelo Filipe Dias Vieira; no Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas tirei a roupa e posei de #Abaporu2022 pra Beatriz Kalil Othero. As capas também têm um grande projeto por trás, com conversas e propostas discutidas com ilustradores e capistas. No caso do Carne, livro-objeto com uma tiragem de apenas 50 exemplares, o Octavio Cardozzo veio com o projeto editorial e pensamos juntos essa apresentação do livro como quentinha. A inspiração pra isso vem da minha admiração por artistas multimídia que misturam diversas plataformas e suportes em seus trabalhos, como a Patrícia Galvão/Pagu, escritora, diretora, cartunista e jornalista de São Paulo; Márcio Junqueira, poeta, artista visual e performer baiano; Denilson Baniwa, artista visual, performer e escritor do Amazonas; e a Anitta, cantora, performer, dançarina e intelectual carioca.
No romance, por meio de técnicas de colagem, você incorpora uma variedade de fontes literárias, desde os cânones da literatura brasileira, como Machado de Assis, Olavo Bilac e Lima Barreto, até elementos da cultura digital, como memes e subcelebridades. Todavia, essa abordagem antropofágica não é claramente identificada nas referências do texto. Poderia discutir a sua perspectiva sobre essa técnica de escrita?
A colagem e a apropriação são marcas do nosso tempo. O próprio conceito de meme orbita em torno disso, a repetição infinita de uma ideia, cada hora apropriada de maneira diferente. As piadas e frases de efeito dos memes já estão se incorporando na nossa linguagem do dia a dia, assim como as figurinhas de zap. Então vejo como algo muito natural escrever mimetizando esse modo de falar.
O presidente pornô, na contramão do que tem acendido o mercado da literatura contemporânea, nega um contato excessivo com a realidade. A máxima “Só me interessa o que não é meu”, do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, no seu projeto, torna-se “Só me interessa o que nunca aconteceu”, como está em um dos seus rascunhos. Como você enxerga essa “crise da ficção imaginativa”? Na sua opinião, seu romance contrasta com ela?
Acho difícil dizer exatamente “crise da ficção imaginativa”, como alguns críticos têm colocado. O Baudelaire, em 1857, já tava falando de crise. A literatura é a própria crise, e isso me interessa profundamente. O que não me interessa é a realidade. De fato, se nos meus livros há um excesso de cu, na ficção contemporânea há um excesso de realidade (isso não é algo negativo, é simplesmente um fato). Pra mim, a literatura tem menos a ver com o real e mais com a fantasia (o Eros & o carnaval). Tentei fazer d’O presidente pornô um manifesto nesse sentido. Porque a literatura é esse espaço radicalmente livre onde podemos fazer o que quisermos, até comer o cu do presidente.