Para celebrar os 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, o projeto MinasMundo, em parceria com o Pernambuco, promove, durante o mês de fevereiro, a ocupação virtual Modernismo rede social a partir de uma seleção de cartas de participantes desse movimento cultural que pretendeu dar um significado novo ao que entendia ser a cultura brasileira até então. Ao longo do mês, serão duas postagens por semana, às terças e quintas-feiras.
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As cartas foram um dos principais meios de conexão entre os modernistas no dia a dia do movimento e de mobilização para uma luta coletiva, que enlaçaria futuras gerações, em prol da mudança da cultura e da sociedade brasileira. A correspondência permite, ao leitor e à leitora de hoje, acessar as redes sociais modernistas e conhecer os bastidores dos processos de criação, bem como das alianças, disputas e rupturas em torno dos rumos programáticos do movimento. Afinal, entre avatares e seguidores, foram muitos os modernistas e são muitos os modernismos, mesmo considerando apenas a sua matriz paulista, que, apesar de sua diversidade interna, acabou conseguindo tornar hegemônica sua autorrepresentação de protagonista dessa renovação, abafando a importância dos grupos do Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais, por exemplo.
A carta é um gênero transgressor. Bem antes destes tempos de vida remota e virtual, se uma cidade, país ou oceano separava duas pessoas que sentiam falta e queriam ter notícias uma da outra, escrever uma mensagem, lacrar em um envelope e mandá-la pelos correios era uma forma de tentar atravessar esses limites físicos e geográficos. Mas a carta é também um texto híbrido e rebelde a qualquer tipo de classificação definitiva, que contribui tanto para a reconstituição histórica e (auto)biográfica, quanto para a compreensão das dinâmicas sociais, políticas e culturais em que essas vidas estão inseridas. Ao invadirmos, como voyeurs, a intimidade da correspondência modernista, nós também estamos cruzando as fronteiras entre o privado e o público e entrando num circuito de trocas guardado durante anos no segredo dos arquivos.
Como linkar passado e presente para nos aproximarmos (em e) de uma forma contemporânea do modernismo de 1922? Como experimentar hoje sua dimensão de movimento cultural em nosso próprio cotidiano? Com o intuito de furar a “bolha” acadêmica, adotamos como linguagem desta ocupação as estruturas e componentes das nossas redes sociais para pensar sobre o lugar do modernismo no mundo contemporâneo. Como o desenvolvimento da escrita epistolar se deu paralelamente ao da própria cultura escrita, não é difícil identificar seus elementos e sua economia discursiva nos meios de comunicação instantânea atuais, como Facebook, Twitter, WhatsApp e Instagram, já que são também práticas sociais cotidianas. Assim, inspirados na técnica da colagem/montagem cara aos modernistas, baralhamos cartas de diferentes datas, locais e missivistas, nem sempre confluentes e relacionados, a fim de provocar tensões deliberadamente anacrônicas entre temporalidades, sujeitos e discursos. O choque gerado por essa interpelação criativa busca romper com as expectativas de leituras consolidadas e abrir novas interpretações do modernismo e dos seus sentidos mais perenes para a cultura brasileira.
Embora Mário de Andrade ocupe o centro dessa rede alimentada por cartas, diversas figuras representativas do cenário intelectual e cultural brasileiro frequentarão também este espaço, seja por engajamento, proximidade ou oposição ao movimento. Alceu Amoroso Lima, Anita Malfatti, Câmara Cascudo, Carlos Lacerda, Carlos Drummond de Andrade, Graça Aranha, Henriqueta Lisboa, Manuel Bandeira, Pedro Nava, Tarsila do Amaral, entre outros/as, encenarão fofocas, tretas e cancelamentos, como se diz hoje, e nos farão companhia nessa caravana modernista de volta para o futuro.
Nossos recortes de cartas pretendem compor um repertório temático fundamental do modernismo, como se formassem peças de um quebra-cabeça, ou pistas de uma trama, que caberá ao leitor montar. A ocupação traz ainda a público, pela primeira vez, trechos da caderneta de endereços de Ronald de Carvalho, que foi um “influenciador” decisivo no engajamento dos artistas do Rio de Janeiro, então capital federal, na Semana de Arte Moderna, o que certamente lhe conferiu maior abrangência, impacto e repercussão. A caderneta é uma espécie de who’s who do movimento e constitui, nesta ação do MinasMundo, como as nossas atuais listas de contatos, o objeto-síntese da rede social modernista.
Organizadores:
Maurício Hoelz é professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autor de A violência que nos une (Editora UFMG, no prelo) e coautor de O modernismo como movimento cultural (Editora Vozes, 2022). É um dos coordenadores da rede de pesquisa MinasMundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira.
Rodrigo Jorge Ribeiro Neves é professor do Departamento de História e Teoria da Arte da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da mesma instituição, com bolsa do CNPq. Organizou Contos e novelas, de Júlia Lopes de Almeida (Editora Hedra, 2021), e A escrava, de Maria Firmina dos Reis (Editora Hedra, 2021).