Encontro com minha vizinha de porta. Dona Sofia, ela se chama. É professora. “Não consigo mais dar aulas”, desabafa. Anda com uma tonteira estranha, um vento forte e inexistente que a empurra pelas costas. Fez exames, nada apareceu. “É só cansaço”, lhe disse o médico. Agora vem me consultar bem no vão da escada, onde ficam os galões de lixo. “O que poderá ser”? – me pergunta com uma esperança frouxa, como a alça de seu vestido. Preciso dizer alguma coisa. Qualquer coisa que a console, ainda que nada explique.
Aí me lembro do livro que terminei de ler, Um, nenhum e cem mil, o último romance de Luigi Pirandello, de 1926. Conta a história de Vilangelo Moscarda, um usuário que, um dia, ouve de sua esposa o comentário distraído de que seu nariz parece um pouco caído para a direita. Nunca havia pensado nisso. Sente um golpe, como se, de repente, deixasse de ser quem pensa que é. O personagem de Pirandello descobre que existem, pelo menos, dois Moscardas: o que ele pensa que é e o que sua mulher, Dida, enxerga nele. A duplicação o leva para um precipício. Avançando em seus pensamentos, ele constata que existem, na verdade, mil Moscardas, todos diferentes entre si, vistos pelas mil pessoas que o cercam.
Pergunto-me se também minha vizinha não sofre de alguma observação devastadora. Se também ela não é vítima da facada do olhar alheio. Estou a pensar em Pirandello quando a vejo distraída com seu celular. Está enfurecida com um comentário deixado por uma amiga, ou ex-amiga, em um de seus posts.
“Quem ela pensa que eu sou”? – reclama. Imitando sem saber a Vilangelo Moscarda, também minha vizinha descobre que os outros, mesmo as amigas mais próximas, nela vêem uma mulher que desconhece. “Isso me tira do chão”, reclama. Sem conseguir alcançar o assoalho com seus chinelinhos de seda, minha vizinha se desequilibra. “Queria ver se essa mulher teria a coragem de me dar a outra face”, desabafa.
A internet é um desfiladeiro de faces – basta entrar no Facebook. No Instagram, os temas se alternam e se misturam, sem nenhuma promessa de ordem, ou de conclusão. O decote rendado de dona Sofia indica, porém, sua preferência pela segurança. “O senhor não vai me dizer nada”? – protesta. Em um impulso insano, arranco o celular de suas mãos e o jogo em uma das lixeiras. Começa a gritar: “O senhor é louco”. Não vou sugerir que ela leia o romance de Pirandello porque não fará isso. Não abandonará suas telenovelas. Radicalizo: “Sigo as instruções do doutor Luigi”. Pede que eu me explique. “É um médico italiano, que me atendeu, certa vez, em Trieste”. Não sabe onde fica Trieste. Não tem muita certeza se sabe localizar a Itália. Volta a se sentir um pouco tonta.
Suspira. “Fale-me mais desse doutor italiano”, diz. Ele aceita planos de saúde”? Agora preciso lidar com o homem mentiroso, ou pelo menos fantasioso, que sou também. “Depois lhe passo o telefone do doutor Pirandello”, digo. Ainda me pergunta se Trieste fica muito depois de Madureira. Pergunta-me ainda se não vou pegar seu celular, que atirei no lixo. Saio correndo, ainda o encontro. Devolvo. “A senhora me desculpe, é que sou dado a atos impensados.” Só agora, repetindo o senhor Moscarda, vejo em mim um homem que nunca pensei ser. “Começo a achar que o senhor está precisando de um médico mais do que eu”, dona Sofia me diz.
A sombra de Vitangelo Moscarda, em definitivo, se mistura com a minha. Ficções são perigosas, elas nos deformam. Melhor dona Sofia acreditar que Luigi Pirandello é só um médico suburbano. Não suportaria a convulsão que a literatura provoca.