Foto Entrevista TimothyMorton Emilija Škarnulytė

 

“Não se interessa por livros de ecologia? Este livro é para você.” É assim que Timothy Morton começa Ser ecológico, a ser lançado no segundo semestre pela Quina Editora. Apesar de ter demorado para chegar no Brasil, agora sua obra aterrissa em dois lançamentos: O pensamento ecológico (tradução de Renato Prelorentzou), lançado em fevereiro, e o próximo, Ser ecológico (traduzido por Maíra Mendes Galvão).

O nome de Morton é considerado como um dos cinquenta mais influentes na filosofia hoje, trazendo aspectos desconfortáveis e apaixonantes em seus livros. Marcantes são seus estudos sobre romantismo inglês e sobre ecologia, sem esquecer sua investigação sobre “hiperobjetos”, embora tenha uma miríade de artigos publicados sobre muitos temas. Sendo uma pessoa não-binária, também aporta discussões relevantes sobre gênero, além de debater a cultura pop. Nasceu em Londres e hoje leciona na Universidade Rice, em Houston (EUA).

Em O pensamento ecológico, sua filosofia lança bases para absorver algo da estranheza estrangeira do que denominamos de “Natureza”, cheia de hibridismos, mutações, com um lado sombrio e oculto. Critica a pureza do preservacionismo, apontando que o meio ambiente não seria um tipo especial de propriedade privada: “a Natureza sempre esteve ‘lá longe’, alheia e alienada”. Em seu lugar, propõe uma ecologia ligada profundamente à coexistência e interconectividade.

Embora pensar a crise climática seja urgente, qualquer pessoa que tenha familiaridade com o tema compreenderá os dois desafios desse debate: a complexidade e a apatia de alguns setores. Sobre o primeiro, somente lançando mão de áreas diferentes da ciência seremos capazes de lidar com o cenário, da meteorologia à engenharia de alimentos, da educação ao direito. O fenômeno é tão extenso que nenhuma ciência poderia se furtar de dar sua contribuição. Refletindo essa característica, os dois livros de Morton debatem da evolução darwiniana até a literatura romântica para dar conta da complexidade.

O segundo desafio é mais delicado: mesmo que o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU (IPCC, na sigla em inglês) tenha feito alertas sobre a situação global com base em consensos da comunidade científica, assistimos a uma apatia dos setores progressistas. Eventos extremos em diferentes lugares do globo não parecem transmitir a premência da “bomba-relógio climática”, nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres. A enxurrada de fatos não parece nos comover mais, numa espécie de pesadelo longínquo e enevoado.

Diante disso, o Ser ecológico faz um convite muito vívido e humano: pensar a questão ecológica em bases reais, sublinhando o que sentimos em relação ao momento que vivemos. Uma maneira bastante sensível de convidar ao pensar em conjunto o Antropoceno, a época atual, na qual a espécie humana alterou a vida no planeta. Na própria definição da obra, “um livro é sobre como vivenciar o conhecimento ecológico”.

Nesta entrevista ao Pernambuco, Timothy Morton nos conta como a literatura está ligada com a vida de uma forma muito profunda. Depois, explica seu conceito de “malha” — em O pensamento ecológico, conceitua-a como uma teia que conectaria seres vivos em diferentes espaços e tempos.

Na conversa, entrelaça esse conceito de malha com a evolução, mencionando o caso das “lacunas evolutivas”: muitos fósseis não foram preservados, entre eles, os fósseis de transição, os que demonstrariam percursos evolutivos entre espécies. Embora essas lacunas existam, o cenário todo termina por apontar a certeza da linha evolutiva. Igual a uma malha, mesmo com os buracos pequenos, o que se vê é um tecido. Morton também menciona como o desejo queer seria um motor da evolução. Em uma das passagens mais bonitas da conversa, sublinha: o pensamento ecológico precisaria, antes de tudo, girar em torno da compaixão.

 

Gostaria de começar com a literatura, pois você estudou essa arte e usou várias referências a obras literárias em seus livros. Imagino que a literatura sirva como uma ferramenta para conceder uma escala ao inimaginável, a catástrofe da crise climática. Ela nos oferece ferramentas cognitivas para lidarmos com ações possíveis, para sair de um estado de apatia que observo com muita preocupação, principalmente dentro do campo progressista. Por meio da literatura é possível imaginar o gesto de abraçar “estranhos estrangeiros”, mas sem desfazer suas ambiguidades, sem retirar um caráter sombrio e ambivalente do que denominamos de Natureza. Diante disso, como a literatura auxiliou o desenvolvimento de sua filosofia ecológica?

A literatura sempre foi de extrema importância em toda a minha vida, inclusive tenho um doutorado em literatura inglesa. E acho que é essa palavra, “vida”, a mais importante. Muito além de um conceito biológico (“vida” versus “não vida”) ou de uma categoria jurídica (“esses seres merecem viver”), em grego, a vida também é denominada de thymós, que significaria basicamente pulsação ou palpitação. Vivemos em um universo vivo, a teoria quântica nos assegurou isso. A vida é uma coisa que o universo “faz”. A vida é um acidente belo, pois acidentes belos podem acontecer em nosso universo. Para mim, a literatura é “sobre” viver, no sentido de não apenas apontar para a vida, mas ser feita a partir dela. A poesia romântica sempre ocupou um lugar muito especial em meu coração no que diz respeito à estranheza e à intensidade do encontro com esta vida.

 

Em várias autorias do Sul Global, a noção de “centro” é muito contestada no debate ecológico, pois “centro” colocaria em destaque áreas nas quais não é tão nítida a pressão da exploração capitalista sobre o meio ambiente (a exemplo de áreas urbanas no hemisfério norte). Em uma perspectiva ecológica, o centro estaria também nas minas de ferro, nas plataformas de petróleo, nas cidades e até aqui na minha casa, onde meu cachorro cochila. Creio que você oferece uma boa contribuição a esse debate, com o conceito de “malha” (mesh), pois também insere a ideia de interconexão. Você poderia nos dizer o que é esse conceito? Por qual motivo a interconexão é fundamental?

Claro. Uma malha é algo em que as lacunas são tão importantes quanto as conexões entre as coisas. A evolução [das espécies] apresenta uma aparência semelhante a uma malha, pois a extinção cria lacunas evolutivas entre as formas de vida. Observando-se um registro fóssil, as lacunas confirmam: a evolução está correta! Não há centros na biosfera ou no espaço biológico da evolução.

Historicamente, a atividade humana terminou criando hierarquias violentas de maneiras brutais. Se existe um responsável pelo problema ecológico em que nos encontramos, estes são o colonialismo e o legado da escravidão. Na malha da biosfera, as coisas estão interconectadas de tal forma que não há centro nem borda, nem topo nem base. Não há direção. Os seres humanos nunca foram o clímax de nada.

 

O pensamento ecológico é intrinsecamente queer. Gosto muito de como essa ideia do queer incorporado ao pensamento ecológico. Por um lado, alguns discursos sobre a “Mãe Terra” buscam atribuir características de gênero ao meio ambiente que, embora até possam ser feitos de forma afetiva e inclusive crítica, terminam por causar curtos-circuitos imprevistos no imaginário — por exemplo, na metáfora estendida, a Natureza deveria assumir o dever de cuidadora ou ainda pode se “cuidar sozinha”. Por outro lado, nas estatísticas sobre nomes de furacões, é comprovado que as pessoas se previnem mais quando os furacões recebem nomes masculinos, pois causam mais temores. Dessa forma, a nomeação com relação a gênero não é neutra e possui efeitos em ações reais. Como inserir o queer no debate pode ampliar nosso horizonte imaginativo?

A reprodução sexual implica estranheza. Se pensarmos em toda a biosfera, com exceção de alguns tipos de bactérias que se copiam a si mesmas — ou seja, com exceção da clonagem —, todo o resto é feito de desejo, sem um objetivo, um télos; ou seja, é um desejo queer.

Não há necessariamente um impulso reprodutivo ou um télos na manifestação sexual, que evoluiria com relação à subjetividade de formas de vida femininas. Posso achar um pato macho bonito. Portanto, os patos machos podem achar uns aos outros bonitos. Esse senso de “belo” é, na verdade, o padrão para ser um ser senciente! O desejo queer é o principal motor da evolução. Não há nenhuma controvérsia em afirmar isso. Isso está no [pensamento] básico de Darwin (em A origem do homem e a seleção sexual, 1871).

 

Depois de uma boa recepção de O pensamento ecológicovem um livro novo seu para o Brasil, Ser ecológico. Você poderia dizer mais sobre esse lançamento? Qual a diferença entre os livros?

O livro O pensamento ecológico é o “o quê” — o que somos, em que tipo de mundo vivemos? O livro Ser ecológico é o “como”. Como podemos ser, considerando o que sabemos sobre nossa existência ecológica? Procuro argumentar que isso não é tão difícil assim quanto você imagina. Gostamos de fazer com que pareça muito difícil, mas, na verdade, nós simplesmente somos ecológicos. Educar bem uma família ou ensinar estudantes significa compreender a seguinte ideia: alguém já sabe que você educa ou que você ensina. Você simplesmente faz isso.

 

Quer deixar algum último recado para o público brasileiro?

A ação e o pensamento ecológicos giram em torno da compaixão e não da vingança. A vida é a maneira pela qual o universo se enternece de si.

Há uma conexão fundamental entre a maneira de como essa compaixão aparece no pensamento cristão e a maneira pela qual alguém pode se tornar ecológico. A ação e o pensamento ecológicos não são formas de substituir qualquer coisa que esteja relacionada à religião, mas são formas de mostrar comprometimento com crenças das mais avançadas. Uma delas é a ideia de compaixão. Podíamos pensar mais sobre isso.

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