TertulianaLustosa Divulgação

Em setembro de 2021, Tertuliana Lustosa queimou uma bandeira do Brasil durante o show da A Travestis, sua banda de pagodão baiano. O público gritava: “Fora Bolsonaro!”. E a imprensa noticiou o ato como um “protesto” contra o então presidente, o que levou os bolsonaristas a fazerem posts de repúdio nas redes sociais e motivou o deputado federal baiano Abílio Santana (à época no PL) a propor uma lei para punir destruição ou ultrajes à bandeira e outros símbolos nacionais.

O gesto incendiário da piauiense de Corrente radicada em Salvador continua reverberando e ganha mais densidade em um combo de três livros lançados pela Editora Kazuá: a coleção de ensaios e textos críticos Manifesto traveco-terrorista, o poema regionalista Morte e vida Sertransneja e Playboi, um romance travesti, que começou a ser escrito quando a autora tinha 13 anos. Em comum, as obras apontam para fazeres artísticos que, como a autora ressalta, “fraturam a universalização do ‘nós’ brasileiro”: as existências e saberes dos mendigos, putas, negras, travestis e indígenas.

Seu trabalho vira pelo avesso dois grandes eixos teóricos/artísticos: a teoria queer, que ela afirma não ser pensada a partir da radicalidade da experiência de gênero das travestis brasileiras, e o modernismo da Semana de 1922, um movimento que elaborou uma visão extrativista da antropofagia e “engoliu e digeriu as próprias identidades subalternas brasileiras — e não a arte europeia, como se propunha”. Tertuliana opera a partir dos princípios-babados do traveco-terrorismo, uma expressão de “poesia de gênero” que atravessa toda sua vida, das páginas dos livros às canções de pagodão como Murro na costela do viado, Cagar no pau e Ele senta em cima da prostituta.

Você tem um trabalho na música com a A Travestis e agora lança três livros de gêneros bem diferentes — tem textos mais ensaísticos, teóricos e também o romance e o poema de influências regionalistas. Como enxerga esse atravessamento de linguagens? Até que ponto um ressoa sobre o outro?

Eu enxergo o meu trabalho como uma produção em rede. A minha linguagem traveco-terrorista. Os meus livros têm algo muito violento, agressivo. E isso se reproduz na minha música, que fala “murro na costela do viado”, “bota no cu da Tieta”... Não são linguagens que eu criei pensando em fazer uma música aqui pra bombar. Elas seguem uma linha de pensamento filosófica que passa pelas minhas performances, pelos meus textos, meu romance, meus poemas e também pela minha música. E outro aspecto que interliga tudo é a questão de gênero e território alinhadas. Por que eu canto pagode baiano, piseiro, o arrocha, o baião, o brega funk? São ritmos regionais que eu experienciei na adolescência e na infância. Eu tento trazer essa minha origem musical regionalista e ao mesmo tempo um discurso de gênero que é sadomasoquista, que é do terrorismo poético.

Um dos princípios-babados do traveco-terrorismo é: “a ‘identidade de gênero’ passa a ser denominada também poesia de gênero”. Como acontece esse cruzamento entre arte, poética e vida? Me parece que é mais do que só uma questão de tornar as travestis uma temática.

Eu vejo a transição de gênero como um ato também poético, artístico. Não que eu tenha decidido a minha transição por conta disso. Antes de pensar em ser artista, com nove anos, eu já manifestava minha vontade de ser travesti. Já falava para alguns parentes meus que eu era “uma mulher no corpo de um homem”. Hoje não concordo com essa frase, transgredi esse pensamento de “corpo de mulher”. Mas lá, quando eu tinha nove aninhos, demonstrava isso e ainda não tinha uma vontade de ser cantora, escritora. Isso só foi desabrochar em mim aos treze anos.

E quando eu tinha doze, treze anos, foi quando eu comecei a escrever esse romance, o Playboi. Foi justamente a época em que meus colegas estavam começando a ter as primeiras relações sexuais, saindo pra festas e eu não me sentia bem com a minha identidade de gênero de ser homem cis, com a heterossexualidade, nem com a ideia de ser gay. Então nessa época eu era bem nerd. Até os 16 anos li todos os romances de Clarice Lispector. Eu meio que deixava de lado essa vivência sexual. Troquei a puberdade pelos livros. Passava o tempo inteiro escrevendo e lendo, escrevendo e lendo. Então não vivia a minha sexualidade, a minha identidade no mundo real. Mas encontrava na literatura, na poesia, uma forma de viver isso.

E acredito que foi a arte que me levou a ter forças para assumir minha identidade de gênero. Porque, quando fiz 18 anos, decidi fazer o curso de História da Arte lá na UERJ e já era um motivo para eu sair de Teresina. Lá [no Rio de Janeiro], nesse novo território, consegui começar a engatar minha transição, mesmo. Tive o contato com pessoas que também eram LGBTs e pude me desidentificar um pouco desse background dos ensinos Médio e Fundamental e ir pra uma nova turma. Agora eu vou fazer a minha [cirurgia de] redesignação e quero levar isso para minha arte também.

Em Playboi você dialoga diretamente com A metamorfose, de Kafka, enquanto Morte e vida Sertransneja possui referências explícitas da obra de João Cabral de Melo Neto e Manifesto traveco-terrorista retrabalha esse formato estabelecido dos movimentos artísticos canônicos. De onde vem a ideia de retrabalhar essas linguagens e referências icônicas?

No Manifesto eu já começo trazendo a discussão da antropofagia. E aí eu vou dizer: “Prefiro a chuca”. A questão da antropofagia, ao meu ver, vem de um contexto muito nacionalista. Já eu sou antinacionalista. Eu amava a antropofagia por um fator que ela utilizava, mas eu odiava pelos princípios: quem eram essas pessoas? Quando a Tarsila do Amaral, por exemplo, pinta aquela obra A negra, baseada em uma trabalhadora da fazenda da família dela, eu me pergunto: que periferia é essa? Quem são essas pessoas que estão encabeçando esse Movimento Pau-Brasil da Semana de [19]22? Eu pensava que a gente precisava subverter e pensar autores decoloniais, sejam travestis, pessoas negras, pessoas realmente periféricas. Porque quem encabeçou a antropofagia foram brasileiros. Mas que brasileiros são esses? Donos de fazenda que pintam a sua escrava? O que Nietzsche é com Deus eu sou com o nacionalismo. Eu tô no país que mais mata travestis. Um país que foi roubado por si só já é um absurdo. Meu gesto diante desse país é queimar a bandeira. E na minha obra, a literatura vai beber do Kafka, Murilo Rubião, Clarice Lispector, os autores que gosto.

Você fala em uma fratura da universalização do “‘nós’ brasileiros”? De que forma a arte travesti expõe essa fratura? Pode falar mais sobre?

Porque o brasileiro, ele não tem cultura própria e nem território próprio. É um território roubado dos indígenas. E é uma cultura que é uma mistura indígena, negra, asiática, branca. Foi uma invenção colonial muito malfeita, na minha opinião. O nosso território era completamente respeitado, preservado e se tornou um território de extrativismo. Eu acho um absurdo, por exemplo, existir uma lei pro Brasil inteiro. Lá no Sul do país e lá no Norte as leis seguem a mesma centralidade. Não é elogiando os Estados Unidos, que é o imperialismo total, mas lá eles têm um pouco de noção. Como o país é grande, eles pelo menos dividem os estados, e aí a legalização da maconha aparece em um estado, e outros vão adotando também... No Brasil, isso é muito difícil de acontecer porque se baseia numa centralidade, uma unicidade do poder. É o apagamento total dos donos da terra, que são os povos indígenas. Por isso que eu queimei a bandeira. Acho que a questão é destruir mesmo essa cristalização nacional. Da forma como a gente está tocando esse país está tudo errado. Senão não seria o país que mais mata travestis no mundo, né?

Eu queria te devolver uma pergunta que você faz no fim do ensaio Do monolito travesti: “Por que as travestis são tão apropriadas pelo sistema de arte brasileiro, no qual alguns dominam cargos em museus, universidades e galerias, mas não possuem esses cargos?”.

As travestis são tema do imaginário artístico. Muitas vezes, artistas da arte contemporânea pegam as travestis pra fazer performances, fotografia, entrevistas, doutorados e mestrados. Aí vão lá, entrevistam aquela travesti que tá em situação de vulnerabilidade e geram uma pesquisa acadêmica que vai favorecer uma pessoa cis. Esse procedimento em si já é transfóbico, ao meu ver. Se a travesti está na vulnerabilidade, você tem que oferecer alguma rota de fuga. Não é só você falando sobre isso lá no seu doutorado, porque pode não ter impacto nenhum. Talvez pagando, tipo “tome aí a minha bolsa desse mês”. Mas não. Não dão nem 100 reais! Lá na CasaNem [ONG carioca de acolhimento para pessoas LGBTQIAPNB+ em situação de risco] a gente concordou que tínhamos que parar de dar entrevista porque eles ganham dinheiro todo mês e não querem dar R$ 100 pra uma entrevista.

Você também faz algumas críticas a uma limitação da teoria queer para abordar as experiências de gênero no Brasil. O que a teoria queer não consegue dar conta?

A teoria queer foi cunhada por uma série de intelectuais europeus e norte-americanos e se tornou uma identidade — certas pessoas aqui no Brasil passaram a “eu sou queer”. E de certo modo eram teorias que não vinham da população que realmente vive uma experiência radical de gênero no Brasil. Porque você ser gênero fluido e ser não binário não é a mesma experiência de ser uma travesti. Você ser um fluido ou não binário vai te fazer viver na prostituição, como 95% das travestis vivem? Ou é uma galera que faz faculdade? Quem está nas trincheiras da identidade de gênero no Brasil são as travestis e os homens trans. E essa população não vai protagonizar esses estudos de gênero. Quem vai protagonizar é o gênero fluido. O que é que Judith Butler tem de vivência radical de gênero comparado com Indianarae [Siqueira, ativista trans, fundadora da CasaNem e do projeto PreparaNem, voltado a preparar pessoas trans e travestis para o ENEM], por exemplo? E quando Judith Butler veio a Salvador, Indianarae ficou cara a cara com ela e falou: “Você desfaz gênero na teoria e eu desfaço gênero na prática”. Até cito esse momento no texto. Eu acho que a gente tem que tomar mais cuidado com esse protagonismo na luta de gênero, mesmo. Quem protagoniza isso são as pessoas queer que estão nas universidades ou são as travestis que estão nas trincheiras da prostituição, do abandono familiar, dos seus 35 anos de expectativa de vida?

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