SergioMiceli Divulgação fevereiro.23

 

Quando foi orientando de doutorado do francês Pierre Bourdieu (1930-2002), nos anos 1970, Sergio Miceli vislumbrou na abordagem do sociólogo uma gama de possibilidades inovadoras para se pensar as diferentes nuances da desigualdade social e, por extensão, cultural no Brasil. No ensejo dessas descobertas téorico-metodológicas, Miceli ajudou a introduzir o pensamento de Bourdieu no país ao organizar o livro A economia das trocas simbólicas, publicado em 1974, com uma seleção de artigos do autor em português. No texto de introdução da obra, então já intitulado A força do sentido, ele esmiuçava a potência da Sociologia dos Sistemas Simbólicos de Bourdieu ao passo em que explorava as conexões consistentes – entre aderências e distanciamentos – de Bourdieu com “medalhões” da tradição sociológica. Era uma maneira de comunicar aos pares brasileiros que ainda desconheciam o autor: eis aqui um novo cânone.

Relançado na forma de um livro autônomo, A força do sentido (Editora Perspectiva) teve um denso trabalho de reescrita à luz dos olhos atuais do autor, que buscou tornar o texto menos hermético, mas sem alterar a fundamentação argumentativa que o consagrou como uma ponte importante entre Bourdieu e as ciências humanas brasileiras. Nesta entrevista, o professor titular da Universidade de São Paulo discorre sobre o processo de reescrita do texto após quase 50 anos, a relação de Bourdieu com o Brasil e seus outros interesses de pesquisa, como os pontos de conexão com outros países da América Latina e a investigação acerca dos modernismos brasileiros.


A força do sentido tem duas “vidas”, como pontua o professor Sergio Eduardo Sampaio Silva na apresentação do livro. Inicialmente, o texto foi construído para amarrar ideias e referências centrais de Pierre Bourdieu em relação à sua Sociologia de Sistemas Simbólicos, como forma de introdução aos primeiros textos do autor publicados no país, nos anos 1970. Agora na “segunda vida”, no formato de livro autônomo, se consolida como uma referência de exploração dos pilares e de nuances centrais da obra de Bourdieu, como a elucidação de pontos de contato do autor com outros cânones da Sociologia. Como foi o processo de revisitar esse texto à luz de novas pesquisas sobre o tema ao longo das décadas?

Quando eu organizei a coletânea, que saiu em 1974, a minha ideia era introduzir a obra de um autor que se mostrava cada vez mais importante para o campo sociológico sob diversos aspectos. À época, Bourdieu ainda era desconhecido no país e eu sentia que havia uma certa resistência entre os cientistas sociais brasileiros que haviam tido contato com o seu trabalho. Meu pressuposto principal foi mostrar que o que ele estava propondo tinha um forte enraizamento na tradição sociológica de Émile Durkheim (1858-1917), Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920). No fundo, era um esforço de tentar legitimá-lo por aqui, porque, até então, quase ninguém o conhecia. Eu acho que o texto, além de ter cumprido essa função, teve muita repercussão porque todo mundo que trabalha com cultura se faz, no fundo, a pergunta de qual é o raio de causalidade, de influência e de determinação que a atividade cultural exerce. Eu acho que, mesmo na forma original, o texto atendeu à minha preocupação na época de “naturalizar” Bourdieu entre os pares brasileiros. Foi uma forma de dizer: “olha, o que ele está propondo está inscrito na tradição das Ciências Sociais”. Revendo e reescrevendo o texto para esta nova versão, eu achei um pouco hermético, não muito acessível – o que demandou alguns ajustes. Inicialmente, não pretendia fazer qualquer alteração, mas, ao reler, me dei conta que se tratava de uma coisa que escrevi muito jovem, então era impossível manter o texto intacto. Mas, ao mesmo tempo, eu não conseguia nem queria mudar o cerne do argumento, nem acrescentar citações. O que fiz, então, foi reescrever o texto a partir de uma pauta mais amigável, com menos hermetismo. Eu comecei de leve, depois fui me animando e reescrevi bastante, mas sem mudar o argumento central.

A circulação das ideias de Bourdieu no Brasil foi importante para a constituição do campo das ciências humanas no país. O senhor pertence a uma geração de autores que se relacionou diretamente com Bourdieu e se engajou na divulgação de seu trabalho por aqui. Como enxerga o impacto desse pensamento na feição desses campos atualmente?

À época, não fazia ideia do impacto que as obras de Bourdieu teriam sobre a produção de conhecimento no país. Eu estava começando a carreira. O Brasil é um dos países onde a obra dele teve mais impacto e ressonância. A posteriori, eu consigo entender por que isso aconteceu. Acredito que havia uma necessidade tácita no sistema intelectual brasileiro de um modelo forte de compreensão e análise sobre a atividade cultural. O impacto tem muito a ver com essa demanda. E isso acabou tendo uma repercussão em todas as áreas nas quais ele havia investido de início, sobretudo na Educação, mas também na compreensão da atividade cultural, da indústria cultural. A antologia original (A economia das trocas simbólicas) contém um texto dele (O mercado de bens simbólicos) que foi muito citado sobre a Sociologia de Sistemas Simbólicos, sendo bastante absorvido por ramos da Sociologia que trabalhavam com a atividade cultural. Além disso, é um autor fundamental para compreendermos a desigualdade em todos os seus níveis. Isso acontece porque todo o modelo proposto por ele está ancorado em uma restituição da estrutura de classe e da estrutura de distribuição desigual de capital. É o alicerce de sua obra, isto é, mostrar que toda atividade cultural está estribada nesse sistema de distribuição desigual de capital e de oportunidades de aquisição desse capital.


Baseado na interlocução direta que o senhor e outros pesquisadores brasileiros tiveram com ele, como você avalia o interesse de Bourdieu em relação ao Brasil?


Nos anos 1970, ele tinha uma visível preocupação, no grupo que ele aceitou de orientandos, de garantir uma certa internacionalização da produção que ele esposava. Se você for olhar os primeiros volumes do [periódico científico] Actes de la recherche en Sciences Sociales, o foco da internacionalização é uma preocupação fundamental dele. Ele não conhecia nada do Brasil, sendo eu, até então, seu único orientando não europeu. Eu e outros colegas brasileiros convidamos ele em diversas oportunidades para vir ao Brasil. Várias vezes ele esteve prestes a vir, mas as demandas europeias eram tão absorventes, e ele era tão solicitado no universo europeu, que isso acabou não se concretizando. No entanto, teve um interesse importante pelo Brasil. Ele gostava muito de futebol e me propôs que eu escrevesse sobre o tema para o Actes. Mas eu nunca havia trabalhado com esse tópico e acabou que José Sérgio Leite Lopes, do Museu Nacional (UFRJ), se interessou e escreveu. E, assim, vários assuntos pertinentes ao Brasil foram entrando no escopo da preocupação dele – sempre através de brasileiros que começaram a se enquadrar nas atividades do Centro [de Sociologia Europeia, da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, na França]. Pode-se dizer que a relação com o Brasil foi fundamentalmente mediada pelos pesquisadores brasileiros que trabalharam com ele.


Nas duas últimas décadas, o senhor vem pensando a Sociologia da Cultura a partir de problemáticas referentes a artistas e intelectuais sob um recorte de conexões entre o Brasil e outros países da América Latina. Como essa abordagem impactou a sua percepção acerca da realidade do Brasil e do senso de “unificação” da América Latina?

Pensar o Brasil como algo único é problemático. Os sistemas culturais de todos os nossos vizinhos importantes se desenvolveram no mesmo ritmo e expostos às mesmas circunstâncias. Cada um reagiu de um jeito, mas acho que a tradição sociológica sempre deu muita importância ao prisma comparativo. Penso que o nosso prisma comparativo é ainda mais rentável e producente em relação a países que tiveram um desenvolvimento histórico paralelo e semelhante ao nosso. É também um caminho de aproximar os pesquisadores brasileiros de uma literatura latino-americana. O estudante brasileiro de Ciências Sociais deveria conhecer muito mais História e Literatura latino-americanas do que talvez conheça. O Brasil é muito grande e diverso, o que torna compreensível esse isolamento, mas também vejo esse abismo diminuindo com as novas gerações. Sobre esse mesmo tema, atualmente estou esboçando um livro que terá como centro uma análise comparativa entre Brasil, Argentina e Uruguai, em termos da formação das camadas de elite, através de clássicos de interpretação sociológica oriundos desses três países.


Os modernismos brasileiros e latino-americanos se apresentam de maneira frequente ao longo de suas pesquisas, especialmente através da análise de trajetórias de intelectuais. Isso ocorreu recentemente no livro Lira mensageira (2022), sobre Drummond e o modernismo que tomou corpo em Minas Gerais. Pensando também em livros como Nacional estrangeiro (2003), que aborda o modernismo em São Paulo, qual a importância de seguir jogando luz sobre as disputas e apagamentos que envolvem a formação de cânones culturais relacionados ao status de “moderno”?

O modernismo paulista se tornou o foco de maior investimento de análises e estudos do modernismo brasileiro, em detrimento dos outros modernismos. No centenário da Semana de Arte Moderna, houve toda uma discussão sobre isso fazer parte de um projeto político da Universidade de São Paulo (USP) nas décadas seguintes. Existe um pouco de folclore nessa acepção, mas é inegável que houve, de fato, um investimento institucional robusto através da criação do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, que centralizou as atividades de pesquisa e documentação sobre os modernismos. Mas acredito que havia muito interesse de conhecer a fundo outras experiências modernistas que não a paulista. O livro sobre Drummond vem de outro movimento. Como eu já havia investigado o Estado Novo (1937-1945), e o grupo mineiro estava bastante relacionado a esse governo, busquei entender a gênese do modernismo ocorrido em Minas Gerais, que gerou uma figura estelar tão importante como Carlos Drummond de Andrade. Busquei entendê-lo de uma maneira menos simplista, tentando não encará-lo como uma estrela que apareceu do nada. Não foi assim. O que eu tento fazer no livro é uma reconstrução do universo da elite mineira em que o grupo surgiu, para dar sentido às rotas literárias temáticas que a poesia desse grupo produziu. Tento mostrar que a poesia dele não é compreensível fora do esquadro da política mineira em que ele foi treinado. Todo o universo de sua experiência política não começou no Estado Novo, mas, sim, no treinamento e na aprendizagem de um quadro jovem que foi inserido e estabelecido em uma das facções da política mineira dos anos 1920 e 1930. Através disso, faço uma reconstrução morfológica tanto dos escritores do grupo quanto dos políticos, que eram muito ligados à atividade literária. Você tem essa conjunção específica em um grupo de formação ligado à universidade e de treinamento, com a primeira geração que se forma em Direito no estado, e a produção de um grupo de políticos letrados cujas carreiras permearam a carreira dos “letrados” propriamente ditos. Dito isto, o que tentei elaborar foi uma reconstrução sociográfica da origem social, da escolaridade e da aprendizagem do modus vivendi político e no interior da elite cultural e política daquela região e a confluência desses fatores para o surgimento de Drummond.

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