Em 2002, João Borges era chefe de comunicação do Banco Central, cujo presidente era então Armínio Fraga. Este é um dos personagens fundamentais de Eles não são loucos (Companhia das Letras), o livro em que Borges conta sobre a transição antecipada do governo FHC para o governo Lula. O jornalista, próximo que estava à celeridade do cotidiano político, diz que já à época notava a incapacidade da mídia de noticiar tudo quanto estava acontecendo — não por incompetência, mas pela policromia dos fatos, que talvez impedisse uma visão integral sem acesso aos bastidores. Daí viu a necessidade do seu livro.
Nesse tempo, havia a expectativa de uma reviravolta na condução da economia, fosse Lula ou Ciro Gomes o postulante vencedor, já que Serra, o candidato do governo, não tinha lá muitas chances na disputa. O que FHC fez foi ajudar a sublinhar para as forças econômicas internacionais que Lula (e os demais) era um líder pragmático; além de organizar, especialmente por meio do seu Ministro da Fazenda (Pedro Malan) e do presidente do BC (Armínio Fraga), uma “transição organizada, com rituais e procedimentos assimiláveis, com regras e compromissos de colaboração institucional de todos as áreas do estado com o governo eleito”, diz Borges em entrevista por e-mail.
A história que Borges conta realça a importância de valores democratas, tão importantes para um presidente e para um país. São inevitáveis as comparações: hoje, o Brasil pensa na iminente transição de Bolsonaro para Lula e, em contraste com a colaboração que houve em 2002, tudo indica que Jair Bolsonaro estará fora do país e não fará a simbólica passagem da faixa presidencial. Algo mudou, como diria sutilmente João Borges na nossa entrevista, “certamente o jogo sujo da política ficou mais pesado”.
No seu livro, você explica que já estava acontecendo antes das eleições uma espécie de transição antecipada, organizada por membros do governo de FHC e do Banco Central (com nomes como Pedro Malan, Ministro da Fazenda, e Armínio Fraga, Presidente do BC), o que teria inclusive deixado o candidato governista (José Serra) "puto". Como funcionou esse processo?
O objetivo do presidente Fernando Henrique Cardoso era criar um modelo de transição que se aplicasse ao longo do tempo. Enfim, tentar implantar uma cultura de transição organizada, com rituais e procedimentos assimiláveis, com regras e compromissos de colaboração institucional de todos as áreas do estado com o governo eleito.
Naturalmente, ganhou relevância à medida em que a campanha avançava e ficava clara a possibilidade de vitória de Lula e do PT, configurando dessa forma a expectativa da mais relevante alternância de poder desde o fim da ditadura. Portanto, o modelo já foi testado nessa condição: foi importante para a governabilidade inicial de um governo de oposição, sendo beneficiado por uma iniciativa do governo do PSDB, que perdeu a eleição presidencial em 2002.
A atual transição parece estar acontecendo apesar do eterno medo do golpismo; só que há sinais pela mídia de que a situação encontrada pelos membros dos comitês não foi das melhores. Queria que você falasse um pouco sobre o que mais chama a sua atenção na transição do governo de Bolsonaro para o terceiro governo de Lula, em contraste com a transição de FHC para Lula.
Em 2002, o PT e demais candidatos de oposição (Ciro Gomes e Anthony Garotinho) foram impiedosos nas críticas ao governo Fernando Henrique, ao próprio presidente, à política econômica e aos seus ministros. No entanto isso não impediu que, ainda durante o processo eleitoral, se estabelecessem canais de interlocução entre algumas lideranças do PT, como José Dirceu e Antônio Palocci, e o governo Fernando Henrique, incluindo o próprio presidente, os ministros Pedro Malan e Pedro Parente e o presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Claro que essa interlocução, somada ao fato de que mesmo antes da eleição o presidente já preparava a transição, desagradou a Serra, o candidato do PSDB, por entender que isso sinalizava que o próprio governo explicitava a hipótese de derrota.
Do ponto de vista histórico, o relevante é que a transição se deu em clima de total colaboração e foi, a meu ver, importante para que o PT, que pela primeira vez chegava à presidência, tivesse as melhores condições para iniciar sua gestão.
Há um momento na sua narrativa, bem simbólico, em que José Serra, então candidato à presidência, recebe uma fita VHS que teria um vídeo de Lula e líderes petistas juntos numa festa; uma fita que teria o poder de virar o jogo das eleições. Serra dá a fita a Lula, e inclusive o presidente do PT depois liga agradecendo: “vocês foram muito corretos com o Lula”, ele diz. Isso parece inconcebível hoje. Perdemos algo como sociedade? ou o que você pensa que ocorreu de lá pra cá?
Certamente o jogo sujo da política ficou mais pesado. Repare que, mesmo eu tendo o relato sobre o conteúdo da fita, preferi não citar no livro.
No Anatomia de um desastre você fala sobre a crise econômica que teria começado a ser construída pelo segundo governo Lula e se mostrou de verdade com Dilma na presidência — ao que você atribui vários fatores, como a crise de 2008, erros de diagnóstico dos governos etc. Pensando no cenário de recessão com o Impeachment de Dilma, como você compara a economia nessa época (em que estávamos, ou pensávamos estar, no fundo do poço economicamente) à economia de hoje, com a saída de Bolsonaro?
A recessão do governo Dilma teve causas internas, decorrentes de uma série de equívocos de diagnósticos e políticas inconsistentes. Foi um produto genuinamente nacional, vamos dizer assim. No governo Dilma, tivemos uma grave crise na economia, que transbordou para uma crise no campo político.
No governo Bolsonaro, além das incertezas que deixa no campo econômico, especialmente no que diz respeito à gestão da dívida pública, os erros estiveram presentes em amplos aspectos da vida brasileira. Na questão ambiental, na política externa, no desmonte das políticas sociais, no discurso de ódio, na contestação do resultado eleitoral, na questão da diversidade... Enfim, regredimos de uma forma geral.
“A situação não é tão ruim quanto parece. Se o próximo governo tiver o bom senso de honrar contratos, respeitar a responsabilidade fiscal, as metas de inflação, o câmbio flutuante, a crise vai desaparecer”, disse Armínio Fraga, então presidente do Banco Central, a Palocci, futuro Ministro da Fazenda, pouco antes da passagem de FHC para Lula. O mesmo vale para hoje? Se for o caso, espera-se que Lula siga essas prescrições?
Em 2002, a economia brasileira apresentava um robusto superávit das contas públicas, em torno de 3,8% do PIB. O sistema de metas para a inflação implantado pelo Banco Central sob a presidência de Armínio Fraga em 1999 já se provara eficaz e, por fim, o câmbio flutuante permitia o ajuste das contas externas.
O discurso de Lula e dos economistas do PT durante a campanha gerou instabilidade justamente porque, em linhas gerais, diziam que tudo isso estava “errado”. E se tudo isso estava errado, não funcionava, então tudo mudaria. Mas o que seria colocado no lugar?
Então, o que havia, segundo a visão exposta por Armínio Fraga, era “uma crise de confiança”, levando incertezas para o ambiente econômico sobre como um governo Lula lideraria com esses temas. Na dúvida, a fuga dos investidores foi para o dólar, retirando investimentos do Brasil. O dólar alto provocou alta da inflação, que por sua vez obrigou o Banco Central a aumentar a taxa de juros. Esse conjunto de fatores bloqueou o crescimento econômico.
O país não estava quebrado. Basta observar os dados de desempenho da economia nos anos seguintes: preservados os superávits, mantido o regime de metas para a inflação e o câmbio flutuante, o dólar recuou, a inflação caiu, a economia cresceu. Enfim, superada a crise de confiança, o cenário econômico se ajustou.