O fim da ditadura militar (1964-1985) não marcou igualmente o fim do poder dos militares. O governo Bolsonaro deixou isso óbvio. Mas desde antes já se podia notar esse atributo político nas Forças Armadas, seja sob o “comando supremo” de Sarney ou de Michel Temer.
O jornalista Fabio Victor, em seu novo livro, Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro (Companhia das letras), se atenta a essa influência (cada vez menos) discreta que as Forças Armadas têm tido na política nacional. Na obra, o autor busca — com base em ampla pesquisa — compreender a cultura que dentro das casernas fomentou a ascendência dos fardados e fora delas a permitiu. Foram enlaces de pragmatismo e receio, que desde a redemocratização deram, a gotas, força e confiança ao que hoje se vê no governo militar que Bolsonaro elegeu para reger ao seu lado.
Na entrevista que você lê abaixo, Victor reflete sobre algumas dessas circunstâncias que criaram a atual potência das Forças Armadas. E fala também da dificuldade que se tem de enfrentar o passado da Ditadura, do medo e respeito que os militares nutrem nos civis e dos passos lentos que podem ser dados para se pensar um futuro governo sem uma tutela militar.
No seu livro você narra, pelo passar dos anos, alguns conflitos políticos que irrompem entre forças civis e militares, desde a redemocratização — e a tendência, desde Sarney, é que as forças civis concedam e percam as disputas, o que leva os militares a saírem com cada vez mais força e poder. Onde erramos para que o espectro fardado fosse ganhando forma até o ponto atual?
Creio que vários fatores convergem para esse quadro. A começar do próprio DNA cultural brasileiro, de conciliar, driblar confrontos, priorizar acordões em vez de acertos de contas que possam gerar traumas. Há ainda um respeito excessivo do poder civil pelos fardados, respeito que beira o medo, seja pelo histórico intervencionista do Exército, seja até por motivos familiares (FHC é filho, neto e bisneto de militares; Mercadante é filho e irmão de militares, e por aí vai); ou pelo eficiente marketing das Forças Armadas, que se colocam no papel histórico de guardiãs da República e tutoras das instituições. Por fim, há as circunstâncias: sempre há problemas mais urgentes no país para que os políticos pensem duas vezes antes de mexer com o vespeiro militar (como a fome e o desemprego agora).
A impressão que temos, lendo o seu livro, é que há uma parcela do exército que se aliou a Bolsonaro integralmente; enquanto uma outra parcela, talvez não goste muito do PT, talvez ache a “grande imprensa” tendenciosa e talvez até vote no Presidente, mas não tem em si a sanha golpista. Essa proposição faz sentido? Se sim, já que vivemos em um momento de tentativas de intervenção dos militares na política, por que essa ala mais moderada não se faz mais vocal, até para preservar a imagem das Forças Armadas?
Faz sentido, embora a parcela desejosa de uma direita menos radical pareça ser minoritária ao menos nas cúpulas das Forças Armadas – reflexo da politização promovida por Bolsonaro com a conivência de parte dos comandantes. Essa contaminação política — ou bolsonarização — foi tão extensa e intensa, que inibe vozes mais moderadas, vozes essas que, de resto, estão mais em estratos inferiores. Lembremos também, como detalho no capítulo Ressuscitando o inimigo favorito, do anticomunismo/antiesquerdismo histórico das Forças Armadas, que ressurgiu com força a partir de 2014. Ademais, diria que a autocrítica não é uma virtude nacional, e isso também vale para os militares. Se não houve um reconhecimento dos erros da ditadura, é difícil imaginar que surgirão manifestações contundentes contra erros recentes absurdos, como a não punição do Pazuello, o tuíte do Villas Bôas e a atuação política de militares da ativa (seja fazendo campanha para Bolsonaro em redes sociais ou atuando politicamente em cargos civis).
A Comissão Nacional da Verdade foi criada no Governo Dilma para investigar as violações de direitos humanos do Estado, especialmente no período da Ditadura Militar. Este é um dos episódios que você elege como gerador — junto com a Lava Jato, por exemplo — da “tempestade perfeita” que findou em Bolsonaro. Lembro que um dos militares que você cita no seu livro (coronel Antoine de Souza Cruz) argumenta que só se poderá discutir realmente os absurdos da Ditadura quando os agentes diretamente envolvidos em ambos os lados já estiverem mortos, antes haverá sempre alguma sorte de paixão envolvida. Você concorda?
Concordo em parte. Com o rejuvenescimento dos integrantes das Forças Armadas, certamente as feridas da ditadura ficarão menos latentes. Mas, considerando que não houve reconhecimento nem pedido de desculpas por crimes do período 1964-1985 e que nas escolas militares continua-se negando a verdade histórica (não se ensina que houve golpe militar em 64, mas que as Forças Armadas cumpriram, na deposição de Jango e nos 21 anos de ditadura, uma missão nobre), é um processo muito, muito lento.
A gente fala muito em como os próximos governos vão conseguir se relacionar com os militares e “afagá-los” depois da derrota de Bolsonaro, só que nem tanto se conversa sobre como os militares vão conseguir recuperar sua reputação. Foi o Ministro do Supremo Gilmar Mendes que, ainda no meio da pandemia, alertou que as Forças Armas estavam se associando a um "genocídio", ao se colocarem do lado de Bolsonaro — e assim foi. Nós, como sociedade, deveríamos estar discutindo formas de nos relacionar com essas Forças Armadas, ou formas de não ter que lidar com elas (nesses moldes políticos) no futuro?
Os políticos certamente precisarão pensar em como se relacionar com as Forças Armadas, de um modo respeitoso, mas sem admitir tutela e cobrando respeito à subordinação dos militares ao poder civil – é algo inevitável em tempos normais e urgente depois do estrago causado por Bolsonaro. A sociedade talvez nem precise “se relacionar”, mas seria desejável que compreendesse melhor o papel das Forças Armadas (há ainda muito preconceito de parte a parte) e que cobrasse aos Três Poderes o enfrentamento de questões urgentes: um bom começo seria impedir que militares da ativa ocupem cargos civis; há uma PEC com esse objetivo, de autoria da deputada Perpétua Almeida (do PC do B do Acre), que está parada na Câmara.