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Marina Campanatti, Silvio Aaron e Maria GiuliaPinheiro | Fotos: Fernando Coelho e Alexandre Paixão/ Divulgação

Antes da entrevista com Marina Campanatti, brasileira e atual campeã nacional de poetry slam em Portugal, nós duas só havíamos nos cruzado uma vez. Foi em um sarau de poesia na cidade de Lisboa. Para ambas, é marcante o fato de que nem a imprensa portuguesa e nem a brasileira tenha tido interesse em falar sobre o slam em Portugal, apesar deste ter se tornado uma arena pública e política de disputas e partilha de discursos, com destaque às poetas brasileiras. “Eu acho importante ser você a contar essa história”, ela me disse entre um sorriso e um olhar de cumplicidade.

Marina é atriz de formação e trabalha como artista pedagoga em bairros sociais na Amadora, região metropolitana de Lisboa, onde foi cursar mestrado em teatro comunidade. Começou a escrever em Portugal, como uma “saída de resistência” e uma forma de trazer assuntos para discussão que são deixados à margem em Portugal, principalmente acerca das experiências de violência vividas e vistas por ela. Para ela, o slam tem um lugar potente por levantar questões com um caráter de urgência. Assim, os textos dela são a expressão do que é preciso assumir, tencionar e discutir.

Foi Marina quem me ensinou esse novo vocabulário de encarar o slam como um jogo. Um jogo enquanto estratégia de trazer o público para ouvir poesia, um jogo com o protagonismo da audiência. Por ter um caráter de reivindicação da mudança e de rompimento com o silêncio, “tem temáticas que quando eu toco, com relação ao massacre da comunidade alheia e sobre a comunidade cigana, por exemplo, eu vejo as pessoas revirando os olhos. Quando eu trago um poema com a perspectiva decolonial também vejo pessoas revirando os olhos. E eu acho que com certeza você também sentiu muito isso”. Sua poesia levanta discussões incômodas à sociedade portuguesa. Não as deixa para depois. “Deixem vazar deliberadamente o brilho / dos vossos olhos de criança / mas saiba que a tua esperança vai incomodar / a quem tem sede de poder habilidade de discurso / e dá show de incoerência…”, clama em versos. A exigência do diálogo, do respeito e de direitos é uma característica comum das temáticas trazidas pela poesia migrante em Portugal, em contraposição ao jargão “volta para tua terra” tão consolidado no país.

Marina Campanatti escreve, canta e grita pelas crianças, pelas ciganas, pelas pessoas migrantes. A poeta brasileira carrega o título de atual campeã nacional de poetry slam em Portugal. Foi no dia 9 de setembro passado, na Margem Sul do Rio Tejo, em Portugal, que aconteceu a Final Nacional do 9º Festival de Poesia e Performance Portugal.SLAM! Lá, a slammer, atriz e educadora usou seu corpo e sua voz migrante para trazer à sua poesia o lugar do afeto, da importância do sonho, de des-calar os silêncios da sociedade portuguesa pós-colonial, tendo sido a segunda mulher a ganhar o nacional português de slam em nove edições. A primeira mulher a vencer também foi uma poeta brasileira. Em 2021, a pernambucana Carol Braga venceu a 7º edição do Festival e representou Portugal em 2022 na Coupe du Monde de Poetry Slam, em Paris, na França. E também é esta que vos escreve. Antes de mim, outra brasileira também havia representado o país europeu na copa do mundo de slam, a poeta, atriz e dramaturga Maria Giulia Pinheiro, vice-campeã do Festival Portugal.SLAM!, em 2019. Mas essas não são as únicas pessoas migrantes a se destacarem na arena dos jogos de slam por lá. Ainda em 2019, o poeta angolano do Huambo, Lucerna do Moco, foi o grande campeão nacional. Em 2022 havia sido seu conterrâneo Dj Huba. Ou seja:nas últimas quatro edições, os campeões nacionais de poetry slam de Portugal foram, alternadamente, homens angolanos e mulheres brasileiras.

Os dois países são grandes potências de poetry slam. As finais do SLAMBR são grandes eventos de celebração do slam e do rap enquanto literatura nacional, enquanto poesia afropindorâmica. Já em Angola, a final nacional de poetry slam passa na TV aberta. O país inteiro para e escuta poesia. Lá o slam vem das lutas anticoloniais, denunciando as desigualdades sociais contemporâneas. Vale salientar que, até 1974, Angola ainda era uma colônia portuguesa. “Esse grito de indignação e de liberdade ressurge no quadro pós-guerra civil em novo contexto e contra outros atores, ainda que se possam identificar continuidades ou consequências do colonialismo nos dias atuais”, explica a pesquisadora Miriam Peregrino no artigo “Do Artes Ao Vivo Ao Luanda Slam: Marcos Da Poesia Falada Em Angola No Século XXI”, publicado na revista Terceira Margem, v. 26, n. 49. “Os autores dos novos disparos das letras, muitos deles, vivem o cotidiano da periferia da cidade, veem a realidade que denunciam em primeira pessoa.” Uma característica comum entre jogos de slam no Brasil e em Angola é que são performados por corpos, palavras e estilos periféricos, trazendo temas e questões em tom de denúncia, com o objetivo de reivindicaçãr a memória.

Então, não deve ser por acaso que, neste cenário dos últimos cinco anos, os slammers angolanos e as slammers brasileiras tiveram tanto destaque em Portugal. Com Moçambique, os dois países sustentam o maior número de falantes de língua portuguesa no mundo, e ainda assim há, na xenofobia portuguesa, muito preconceito linguístico. A presença massiva de migrantes lusófonos, originários das ex-colônias portuguesas na América Latina e África, torna as batalhas de poetry slam portuguesas uma celebração da diversidade de sotaques e variações da língua, além de tudo, se fortalece como um importante espaço de escuta. Mas, escutar é um incômodo para quem está acostumado a sempre impor a própria fala. “Tem uma coisa em realmente lidar com a comunidade portuguesa, que é fazer esse enfrentamento. Algo que eu acredito muito no Poetry Slam. Esse lugar de escuta profunda e de tensionar esse lugar com a metáfora”, reflete Maria Giulia Pinheiro, que teve um poema citado no último Enem, justamente falando sobre tal preconceito em Portugal.

Aqui em Portugal eles dizem – eles dizem – que nosso português é errado, que nós não falamos português

Se a sua linguagem, a lusitana, ainda conserva a palavra da opressão

ela não é a mais bonita do mundo. Ela é uma das mais violentas”

Maria Guillia Pinheiro, em Volta para tua terra: uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal (Urutau, 2021)

 

A minha língua é fala, faca ou amolador? a minha língua é de poeta? poeta-faca, poeta-fala, GRITA, poeta! mata camões! genocida da língua, da língua de camões. amola a faca-língua, corta inteira a língua de camões.”

Carol Braga, em Minha raiva com uma poesia que só piora (Urutau, 2021)

 

Mostrar Portugal como um país multicultural na Europa é uma das tensões que provoca o Todo Mundo Slam, que acontece desde 2019 em Lisboa. Criado por Maria Giulia para ser um espaço decolonial. Nessa mesma época, em dois lugares de Portugal surgiram coletivos de poetry slam capitaneados por migrantes: em Lisboa, com o Todo Mundo Slam, e o Poetry Slam Coimbra. Recentemente, nos últimos dois anos, o Slam Trafaria, organizado por Dj Huba, na Margem Sul de Lisboa, e o Minha Poetry Slam, que acontece em Guimarães, no norte de Portugal, organizado pela poeta pernambucana Manuella Bezerra de Melo, também fazem parte desse movimento de criação de espaços confortáveis para todos os tipos de variações da língua portuguesa (e de outras línguas) participarem. E, além de tudo isso, criam espaço para uma cena importante de reivindicação da multiculturalidade da literatura atualmente produzida em Portugal. Carregam em si um caráter explosivo de rompimento do silêncio acerca do machismo, racismo e xenofobia inerentes ao nacionalismo da sociedade portuguesa atual que reivindica um passado colonial de “grandes descobrimentos” como ponto central da própria identidade. Manuella Bezerra de Melo é categórica ao falar sobre o assunto: “Portugal não tem slam sem imigrante. Obviamente que existem bons slammers portugueses, mas quem tem força e faz crescer o slam aqui em Portugal foram e são imigrantes”.

As temáticas dos textos e o próprio formato dos jogos poéticos de slam refletem as questões e as urgências da contemporaneidade, interrogando tabus, gerando discussões e abrindo espaço para vozes marginalizadas. É o embate da sociedade que se acha no direito de gritar em espaço público o quanto é detentora da “raça” portuguesa original, com uma geração que compreende a riqueza da multiplicidade de suas raízes, questiona e afirma. Em artigo publicado na plataforma de jornalismo independente portuguesa Gerador, a socióloga e investigadora na Universidade do Minho, Sheila Khan, destaca que a realidade pós-colonial portuguesa evita falar de crime racial e está recolhida a uma unidade monocraticamente branca. “O que fazemos é apenas tricotar com retórica diplomática enriquecida com instituições fracas esta versão de um país pós-colonial, multicultural e cosmopolita. Os nossos currículos não nos ensinam nada do que fomos e do que somos; as nossas instituições permanecem grandes arautos de racismo e de discriminação.”

Se enxergamos os jogos de slam como reflexo da sociedade portuguesa contemporânea e de suas relações pós-coloniais, veremos a importância que deveria ser dada a esse movimento. As vozes coletivas migrantes emergidas nos jogos de poetry slam, então, estão a desnaturalizar as violências coloniais, racistas e misóginas em Portugal. Nas palavras da fundadora da Plataforma Portugal Slam, a poeta portuguesa Li Alves: “Passei a vida sentada entre homens que não me ouvem / Entre os malditos que se rejubilam da minha menstruação / Fecham-me a porta na cara enquanto me chamam de louca / Passei a vida pedindo licença para entrar / Agora entro ao pontapé / Fodam-se as etiquetas / A casa é minha / Que eles se esvaiam em sangue no meu jardim, / Porque eu / sangro / desde que me conheço / e ainda não desapareci”.

Carol Braga é jornalista, historiadora e poeta. Autora dos livros Minha raiva com uma poesia que só piora (Urutau, 2021) e Insulto à decência (Hecatombe, 2022).