Foto: João Rogério/ Divulgação
Abrir portas para um teatro renovado, nordestino e universal. Um teatro sonhado por Hermilo Borba Filho, que nos legou a disposição para dialogar com todas as vertentes cênicas, estrangeiras ou não, vanguardeiras ou não, mas sempre partindo de nossas referências mais próximas, mais profundas; sempre reconhecendo a beleza e a sofisticação das expressões dramáticas que temos aqui, no nosso terreiro, na nossa cultura. Um teatro generoso, que festeja os encontros, as misturas, as trocas, entendendo que desde o seu surgimento, na Grécia Clássica, essa arte é poderosamente impura: uma combinação sinérgica entre literatura, música, dança, arquitetura e artes visuais, tudo se modificando mutuamente, ao vivo, na efemeridade do fenômeno teatral.
Abrir portas para uma dramaturgia muito livre e inteligente, ilustrando com brilhantismo a noção de “drama rapsódico”, tal como compreendida por Jean-Pierre Sarrazac, ao costurar, com rara eficiência cênica, poemas, canções, narrações e diálogos; entrando e saindo, à vontade, de uma pulsação mais dramática, enquanto navega no épico e mergulha no lírico; uma dramaturgia que conversa com os espectadores, pactuando com eles uma gentil e imediata adesão ao faz de conta do jogo teatral, em que tudo é feito de mentira, mas sempre em prol da verdade.
Abrir portas para os talentos da cena local, pois, desde sua estreia, em 1983, essa peça vem dando visibilidade a artistas e a técnicos de enorme qualidade, que encantam e orgulham as plateias pernambucanas. Nas fichas técnicas, encontram-se profissionais premiados, responsáveis por realizações admiráveis, dentro e fora de Pernambuco, em cujos currículos, certamente, o Baile do Menino Deus terá sempre um lugar de destaque, pois é certo que eles têm com esse espetáculo uma rara e valiosa relação de crescimento recíproco.
Abrir portas para uma melhor compreensão da força política inerente ao acontecimento teatral, exemplificando, como esclarece Denis Guénoun, que o teatro é sempre político, mas que não faz política. A esse Baile, que há muitos anos acontece na ágora do Marco Zero – lugar fortemente marcado por disputas eleitorais –, as pessoas comparecem, antes de tudo, com a expectativa de se emocionar. E, em geral, é isto o que vai acontecer: emoção suscitada pelo contato com o belo. Mas uma emoção convivial – logo, política –, em que as pessoas se veem se emocionando, ou não, diante de uma cena. Emoção talvez capaz de suspender, ainda que provisoriamente, medos e preconceitos, dando aos espectadores a chance de entrar em contato com temas que, em outras circunstâncias, decerto prefeririam evitar. Nesse viés, poucas realizações teatrais têm tido comparável força política, tratando, sempre com muita poesia, de problemas ainda tão presentes em nossa sociedade: o racismo, o patriarcado, a desigualdade econômica, o preconceito religioso, a imposição às culturas hegemônicas, e a falta de empatia.
Abrir portas para o outro, para o diferente, mas superando certo tribalismo rancoroso que hoje tem inviabilizado abraços e favorecidos sopapos. Sem apagar as diferenças, o espetáculo se edifica sobre o chão comum da experiência humana, falando de dores e de alegrias que tocam toda a gente. No palco e na plateia, festeja-se a diversidade das vozes e dos corpos, numa poética dialógica, carnavalizada, interpelando os limites entre o erudito e o popular, o sagrado e o profano, o central e o periférico, o solene e o jocoso, o tradicional e o contemporâneo, o bobo e o sábio, o colonizador e o colonizado.
Abrir portas para o Brasil-que-podia-ser, fazendo-nos vislumbrar um país dos nossos sonhos: acolhedor, independente, rico, divertido, competente, inventivo, brioso, surpreendente, cooperativo, livre, perspicaz, justo, amoroso, democrático, feliz... E, por tudo isso, e para além de tudo isso: um país muito belo, único.
Assim, num mundo cada vez mais fechado, essa brincadeira de Natal restaura nossa coragem para abrir algumas portas. Abrir a porta para rever o Sol e a Lua, a partir do Nordeste; abrir a porta para a beleza, reencontrando-a até num bicho feio, como o jaraguá; abrir a porta para ouvir as crianças, os pregões, as ciganas, os Mateus; abrir a porta para a alegria, vendo que é possível frevar em dezembro; abrir a porta para seguir a estrela, até onde ela nos levar; abrir a porta para o sonho, sendo rei na terra, sendo rei no mar; abrir a porta para aprender novos passos, dançando com um boi-castanhola ou com uma burrinha faceira; abrir a porta para o riso, virando bunda-canastra pelo mundo; abrir a porta para conhecer a nossa história, passando, em especial, pelos lugares que não existem; abrir a porta para o mistério, ganhando um segredo de vida; abrir a porta para abraçar os vizinhos, Maria, José e Jesus. Abrir a porta de casa e sair para encontrar as pessoas, na rua, na praça, no teatro, nesse prodigioso Baile que, há 40 anos, se renova a cada dia.