Sou a escritora Luciany Aparecida, sem deixar de ser Ruth Ducaso, Antônio Peixôtro e Margô Paraíso, assinaturas estéticas que criei como se quisesse segurar com firmeza alguma coisa, talvez minha própria vida. Gloria Anzaldúa, em Hablar en lenguas, diz que ao escrever ela coloca ordem no mundo, “le doy una agarradera para apoderarme de él”. Talvez eu desejasse me ordenar por entre os valões do tentar sobreviver e tenha sido essa performance da escrita uma via de acesso a mundos possíveis.
Corriqueiramente, as pessoas me perguntam se criei esses nomes como o escritor português Fernando Pessoa criava heterônimos. E respondo que não, que minha ordem de criação não faz referência aos heterônimos de Pessoa. Mas, sim, que escrevo me relacionando com uma história de mulheres americanas que criaram nomes para comporem espaços de fuga em ambientes de opressão. Como fez, por exemplo, bell hooks, que criou seu nome inspirado no nome de sua bisavó materna e o definiu como uma plataforma de usos teóricos para refletir sobre intelectualidades, transgressão e liberdade. Inspirada nessa história criei Ruth Ducaso, em referência ao nome de minha avó materna, Ruth, e defino essa ação como uma criação teatral contra-colonial.[nota1]
Para realizar essa definição é preciso retomar o ato da nomeação como uma cena do teatro da crueldade colonial (o nome com ferro na pele marcando a posse da “peça” escravizada) e, consequentemente, o nome (a reinvenção) também existindo (no mesmo contexto social) como uma ferramenta de luta. E estou falando teatro, não apenas no contexto da teoria da representação e mimese. Mas da realização (repetitiva) de uma ação de crueldade para manutenção de lugares de poder. “Nomear é dominar”, escreveu Leda Maria Martins no livro A cena em sombras. Essa ação de crueldade pode ser a reprodução de um discurso. Mas esse discurso não repousa na cama da imitação de uma realidade. Ele instaurou realidades, matou, oprimiu e feriu com ferro a pele de mulheres (ancestrais) indígenas, africanas e afro-americanas, que agora nós, mulheres desse tempo contemporâneo (pós-colonial), desejamos referenciar numa devoluta de chave de criação teatral contra-colonial.
Assim, crio as assinaturas como um ato de revolta e não como um heterônimo marcador de tradição pessoana. Porque Fernando Pessoa pode se colocar como um deus e/ou mesmo como um ateu ao inventar seus heterônimos e isso não soa na cultura literária europeia como um estado e/ou uma produção de violência. Porque deus é um homem, branco, que se posiciona num lugar de centro do mundo. Como está no teatro da representação colonial (mundo das Américas) o homem branco Fernando Pessoa.
De outro modo, eu, como uma mulher afro-americana, ao inventar nomes, heterônimos, não elaboro um trabalho de criatividade literária apenas, pois não é permitido a mim, nesse contexto rançoso das violências coloniais (digo: patriarcalismo, machismo, racismo e LGBTQIAP+fobias), não é permitido a mim ser apenas criativa. Eu sempre tenho que ser criativa e algo mais. E esse algo mais, essa força de pulsão de entrada e/ou de saída das chaves semânticas de leitura que, no contexto patriarcal e racista, já existe sobre o que eu posso e/ou não posso recortar como criatividade literária, me faz afirmar que essas assinaturas que elaboro são um trabalho de violência teatral. Contra essa representação colonial (estética europeia) de homem branco no centro do poder da criação.
Ao fazer referência a existências de outras criaturas, estou violentando o sistema de representação que me inventa como um elemento dominado dessa criação. Eu escrevo como se levantasse a mão “contra o detentor abusivo do logos”, para citar Derrida. E lendo esse logos de modo mais complexo com Leda Maria Martins nesta citação de Performances do tempo espiralar (p.87):
"Como um logos em movimento do ancestral ao performer e deste ao ancestre e ao infans, cada performance ritual recria, restitui e revisa um círculo fenomenológico no qual pulsa, na mesma contemporaneidade, a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo não o tempo, mas a sua concepção linear e consecutiva. Assim, a ideia de sucessividade temporal é obliterada pela reativação e atualização da ação, similar e diversa, já realizada tanto no antes quanto no depois do instante que a restitui, em evento.”
E voltando a Derrida, “não se trata portanto de construir uma cena muda, mas uma cena cujo clamor ainda não se apaziguou na palavra”. E a partir dessas citações trago a questão: Se o clamor ainda não se apaziguou na palavra, quer dizer, eu escrevo literatura e em língua portuguesa, mas como posso nesse movimento que traz o incômodo opressivo da dominação do senhor, como posso subverter esse logos? E a ação que realizo para isso, o gesto de escapar que realizo é: O jogo das assinaturas: como reviravolta decolonial.
Jogar é fazer circular o lugar de poder. Nesse contexto, o lugar de poder da nomeação. E reviravolta é aquela ação do teatro apontada por Aristóteles na Poética, quando uma revelação que seria uma boa saída para revelar o enredo de um drama torna-se o drama em si, intensificando a tragédia. A tragédia nessa cena (da vida de uma escritora afro-americana) é a colonização. Esse é o “palco da crueldade” (Derrida). Assim o jogo das assinaturas como reviravolta decolonial é uma armadilha no próprio jogo das palavras, pois não necessariamente se consegue sair apenas dessa representação signa.
Mas essa minha argumentação em desfavor dessa minha ação é por demais dramática. Visto as mulheres indígenas-afro-americanas que por aqui existiram e que jogaram com suas assinaturas como lugares de deus, como lugares de marcação histórica de poder. Como é exemplo Francisca Poderosa,[nota2] nascida no Brasil antes de 1720 na Vila de Itu, então capitania de São Paulo e Minas do Ouro, filha do português Pascoal Homem e da indígena Moxia Carijó. Francisca Poderosa faleceu em 1743 nas Minas Gerais e deixou testamento no qual pediu que registrassem esse seu nome: Francisca Poderosa – que havia sido um nome criado por ela. De nascimento, registrou o nome Anastácia e havia uma terceira assinatura, Francisca Pedrosa, utilizada em visitas episcopais em Pitangui (Minas Gerais). São vários os documentos (testamentos, processos criminais, cartas de alforria) que atestam que alterar o nome na colônia escravista era uma prática dessas mulheres. Quer dizer, um jogo das assinaturas: como reviravolta decolonial, que pode não ter encerrado em si o sistema colonial, mas riscou suas estruturas deixando marcas na nossa história. Como fez a africana batizada no Brasil Colônia como Joanna Machada e que, ao conquistar sua liberdade, já era nominada, na comunidade que circulava, como Joanna Mina, sobrenome que possivelmente fazia referência ao seu lugar de origem, a Costa da Mina, no continente africano.
O jogo das assinaturas é uma reviravolta decolonial, que abre uma tradição que não é apenas a da pessoa do homem branco. Mas uma posição marcadora de uma cultura afro-indígena de resistência nas Américas, como nos ensinam esses registros de nomeação deixados por essas mulheres.
Nessa cena, escrever em diálogo com histórias de crueldade pode ser uma atitude de coragem, pois oxigena a dor, mas não deixa de ser um flerte com o perigo, pois asfixia. O certo desse jogo é a conquista do equilíbrio a partir da criação do movimento como a conquista de um mundo possível.
NOTAS
[nota1] A palavra colonial aparece nesse ensaio em referência ao período inscrito na história moderna como as “grandes navegações”, que foi a expan- são e consolidação do poder colonial europeu sobre os continentes africano e americano, que teve como uma das bases de sustentação o escravismo como sistema econômico. Grafo a palavra contra-colonial com hífen para intensificar a posição de um movimento de linguagem (o de criar nomes) como uma reação ao sistema colonial. Já o termo decolonial diz respeito à linha de pensamento teórico ligada principalmente a intelectuais latino-americanes que se posicionam contra as colonialidades.
[nota2] Informações da pesquisa de documentação histórica que realizei para a criação da dramaturgia Joanna Mina, texto que é resultado do Edital Dramaturgias em Processo do Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP) e que foi recentemente publicado em livro impresso pelo selo editorial paraLeLo13S. Uma das fontes dessa pesquisa foram, por exemplo, os ensaios do livro Mulheres negras no Brasil escravista e do pós emancipação, organizado por Giovana Xavier, Juliana Barreto Farias e Flávio Gomes (São Paulo: Selo Negro, 2012).
REFERÊNCIAS
• Aristóteles, Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992. Tradução de Eudoro de Souza.
• bell hooks, Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017 (2a ed.). Tradução de Marcelo Brandão Cipolla.
• Gloria Anzaldúa, Falando em línguas: Uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo. Em: Revista Estudos Feministas, v. 8 (2000), n. 1, p. 229-236. Tradução de Édna de Marco. Disponível em: periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106index.php/ref/article/view/9880/9106
• Jacques Derrida, O Teatro da crueldade e o fechamento da representação. Em: _____, A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2009 (4a ed.).
• Leda Maria Martins, A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995 (1a ed.).
• Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar. Em: G. Ravetti, M. Arbex (orgs.), Performance, exílio, fronteiras: Errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2002.
• Ruth Ducaso, Contos ordinários de melancolia. Salvador: paraLeLo13S, 2017.
• Ruth Ducaso, Florim. Salvador: paraLeLo13S, 2020.