Ensaio Um território contestado Hana Luzia outubro.22

 

O Brasil vive de rescaldos – os últimos: das manifestações de 2013, da eleição que escolheu o primeiro presidente de extrema-direita do país e, mais recentemente, da pandemia. Na última década, a história acumula mudanças que provocaram efeitos irreversíveis no cotidiano das pessoas, da política e da cena cultural brasileira. A literatura, “como uma forma de representação, espaço onde interesses e perspectivas sociais interagem e se entrechocam” como define a professora titular da Universidade de Brasília (UnB) Regina Dalcastagnè, dá forma a sintomas perceptíveis dessas mudanças que permitiram o aumento de acesso à voz e à representação de diferentes grupos sociais. Não significa dizer que todas as perspectivas encontraram esteio na ficção e muito menos que a literatura tenha por obrigação espelhar o mundo numa visão simplista da mimesis aristotélica. Também não digo com isso que só havia um tipo de escritor e que agora outros tantos escrevem e publicam. O que vemos, nos últimos dez anos, desde que o livro Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado, de Dalcastagnè, foi publicado, é que o campo literário foi alterado em alguns aspectos, mas ainda mantém problemas, o que sugere que os estudos continuem acompanhando-o.

Consultado, desde seu lançamento em 2012, como umas das fontes mais fidedignas de análise do romance brasileiro publicado nas últimas décadas, Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado (que, a partir de agora, passarei a chamar apenas pelo subtítulo) se encerra com algumas constatações que hoje parecem alteradas ou seguem em processo de mudança, em primeiro lugar pela observada rasura na extrema homogeneidade do campo literário, ainda que ali a pesquisadora já reconheça a ampliação dos espaços de publicação. É fato que o acesso ao Ensino Superior e a aprovação e sanção da Lei das Cotas em 2012, mesmo ano de publicação do livro, são alguns fatores que borram a antiga fotografia do campo literário brasileiro como estabelecido até então e exige que uma nova imagem, mais plural, seja capturada.

Escolho aqui dois caminhos para abrir a discussão sobre o livro, ambos de fácil conhecimento para qualquer leitor com acesso à internet: 1) a lista de autores e autoras dos últimos prêmios literários e 2) o catálogo de editoras brasileiras. A partir desses marcadores, que obviamente se desdobram em dissertações e teses, na inclusão de novos nomes nos componentes universitários e até mesmo nos clubes de leitura que não param de surgir pelo país, volto a pensar no “mapa de ausências” destacado pela pesquisadora no livro.


ANTES DA FOTO, O NEGATIVO

Para uma releitura de Um território contestado é preciso que antes entendamos o negativo que forma a fotografia do campo literário. Aliás, o conceito de campo, a partir de Pierre Bourdieu, é um dos norteadores teóricos importantes para o livro e para o estudo que o fomenta. Vale lembrar o que o sociólogo compreende como campo: “uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Estas posições são definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem a seus ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse determina o acesso aos benefícios específicos que estão em jogo no campo”. [nota 1]

A obra apresenta os resultados da pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè sobre os romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004. O estudo levantou as maiores casas editoriais à época conforme o resultado de consulta a integrantes do próprio campo (ficcionistas, críticos e pesquisadores de diferentes estados), utilizando o método reputacional para selecionar quais editoras teriam seus catálogos estudados. Chegou-se aos três nomes abordados na obra: Companhia das Letras, Record e Rocco.

Se o estudo ainda hoje é referência, isso se deve em parte pelo esforço robusto do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB, em levantar uma série dados específicos sobre cada romance do corpus e, mais que isso, em transformar os números em dados qualitativos configurados como índices de quem escreve e sobre o que se escreve no Brasil. Ao todo foram analisados 258 obras, 165 autores e autoras e 1245 personagens. Recentemente, em 2021, a pesquisa foi ampliada, cobrindo o período de 2005 a 2015; no entanto, para efeito deste ensaio, me detive aos dados publicados no livro de 2012. A sequência da pesquisa, no entanto, pode ser consultada em artigo da pesquisadora disponível online, publicado em 2021.[nota 2] 

Dito isso, antes de me ater aos dois dispositivos que utilizo para reler a pesquisa de Dalcastagnè – os livros premiados e o catálogo de editoras brasileiras –quero deixar claro que esse texto não tem a pretensão de confirmar ou negar os dados da pesquisa, o que seria metodologicamente inadequado. Também não pretende contrapor a percepção sobre os prêmios e às editoras aos números apontados no estudo, o que seria desonesto. Espera-se apenas que a releitura do livro, 10 anos depois, realce avanços no campo literário condizentes com as mudanças no país, bem como o que, na minha hipótese, permanece inalterado ou que teve pouca movência até aqui.


AMPLIANDO A GEOGRAFIA, REALÇANDO AS RAÇAS

Em 2018, a obra a ganhar o Prêmio Jabuti de Livro do Ano, um dos mais importantes do país, causou um estranhamento por dois motivos: o livro premiado, à cidade, foi escrito por um autor cearense, desconhecido e publicado de forma independente. Mailson Furtado estava fora das bolhas por uma questão geográfica, pela “falta” de editora que o representasse e até pela “não profissionalização”, uma vez que o autor tem como primeira atividade a odontologia, contrariando o perfil anunciado na pesquisa da UnB. Um território contestado, por sua vez, afirma que o perfil do escritor brasileiro é “homem, branco, aproximando-se ou já entrando a meia idade, com diploma superior, morando no eixo Rio-São Paulo”. Escavando ainda mais, o livro de 2012 aponta que a soma dos autores de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais juntos ultrapassam 70%, e que essa autoria em sua maioria atua como jornalista, professor universitário ou “escritor”.[nota 3] Esse último dado já revelava a crescente profissionalização do escritor, muito antes, aliás, de vermos a profusão de cursos de escrita criativa.

Em 2020, a pernambucana Cida Pedrosa repete a ruptura de padrão ao vencer o prêmio principal do Jabuti com Solo para vialejo (Cepe Editora), mesmo ano em que Torto arado, do baiano Itamar Vieira Junior, ganha na categoria Romance Literário. Lembro que Torto arado também venceu os prêmios Oceanos e Leya (este segundo permitiu a publicação da obra primeiro em Portugal), ambos destinados a países lusófonos. Meses depois, o livro foi publicado no Brasil, pela editora Todavia, e virou o hit que todos acompanhamos e segue como um dos livros mais vendidos desde então.[nota 4] Ainda a respeito dessa edição do Oceanos, vale lembrar que o terceiro lugar ficou com a brasileira Maria Valéria Rezende, por Carta à rainha louca (Alfaguara).

Um ano antes, em 2019, o Oceanos concedeu os três primeiros lugares a autoras mulheres – o que é raro –, entre elas, a brasileira Nara Vidal. Nos aproximando mais, em 2021, o segundo lugar foi o romance O ausente, de Edimilson de Almeida Pereira, publicado pela Relicário. A obra inaugura a trilogia Náusea, que é composta por Um corpo à deriva (Editora Macondo) e Front (Editora Nós), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021.

Também merece destaque as premiações do Prêmio Jabuti na categoria intitulada Fomento à Leitura (que até 2018 se chamava Formação de Novos Leitores). Em 2021, a distinção foi concedida ao Slam Interescolar SP e, em 2020, à Festa Literária das Periferias (Flup). Esses exemplos recentes acenam para o reconhecimento dos tipos de eventos que mais atraem o público jovem das periferias para a produção e o consumo de literatura, valorizando a oralidade, aproximando a juventude das artes em geral e incentivando que os jovens sejam escritores.

A respeito de raça, os dados organizados em Um território contestado indicavam que a cor da personagem no romance brasileiro contemporâneo é branca – 79,8% das personagens analisadas – e 56,6% dos romances analisados não possuem nenhuma personagem não-branca importante. A conclusão da pesquisa, usando apenas como base de comparação os números do último Censo do IBGE, é que o romance publicado de 1990 a 2004 não corresponde à diversidade da população brasileira.

Nesse sentido, a diversidade de raça também nos prêmios literários, seja pela temática dos livros premiados ou por seus autores, é um dado importante que demonstra um novo momento da literatura. Depois do premiado Torto arado levantar as questões de terra e dos quilombolas ao leitor amplo e genérico, ou seja, o leitor não especializado e que chega ao livro por caminhos de divulgação que ultrapassam a influência acadêmica, em 2021, o melhor Romance Literário do Jabuti foi O avesso da pele (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório. Além dele, de Torto arado e de Marrom e Amarelo (Alfaguara), de Paulo Scott, as obras recentes de Edimilson de Almeida Pereira trazem a questão de raça em relevo, apontando por um lado para a valorização da temática enquanto potência incendiária da nossa tradição literária e, por outro, oferecendo ao leitor outras perspectivas. Assim, a divulgação de uma autoria contemporânea plural mostra, talvez, a ampliação das possibilidades de representação e de reformulação de nossa “coleção”, lembrando o termo de Néstor García Canclini, enquanto leitores.


INTERVENÇÃO CULTURAL DE NOVAS EDITORAS

Muitos dos livros citados na seção anterior servem de mote para falar de uma segunda mudança sensível no campo literário brasileiro, a visibilidade das editoras de menor porte (ou segmentadas) e o sensível impacto das redes sociais para a divulgação de trabalhos dessas editoras e de publicações independentes. Há 25 anos, a Câmara Brasileira do Livro indicava que das 600 casas editoriais brasileiras, quatro sozinhas respondiam por 35% a 40% do faturamento global do segmento. Os livros que mais circulavam e, portanto, eram vistos e lidos eram da Companhia das Letras, Record e Rocco, acompanhados da Objetiva. No entanto, os catálogos de editoras têm ajudado na composição de um novo retrato da literatura produzida e lida no Brasil por terem passado a agregar novos nomes no mercado ou que passam a se sobressair em meio às casas editoriais maiores, impulsionados pelos algoritmos e também pautando assuntos que se tornam urgentes para além dos seus grupos específicos (negros, indígenas e pessoas LGBTQIA+, para citar os exemplos mais notórios claros).

Entre os nomes que endossam essa percepção estão os das editoras Malê, Ubu, Organismo, Jabuticaba, paraLeLo13S, Relicário e a mais antiga delas, Patuá. Desses nomes, a Malê, especializada em literatura afro-brasileira, destaca-se pelas ações de intervenção cultural como a realização de oficinas e a criação de um prêmio literário. É claro que a criação de novas editoras não nega a trajetória de publicações que abriram caminhos para muitos escritores, como os Cadernos Negros no fim dos anos 1970, muito menos das publicações de coletivos ou de editoras com décadas de estrada como a Pallas. É sempre bom realçar que os largos passos dados por essas iniciativas sedimentaram o terreno de discussões raciais, resvalando para a ampliação dos espaços editoriais como locais também políticos. O retrato lançado em 2012 por Dalcastagnè, indicando que apenas 7,9% das personagens são negras, 5,8% das protagonistas, 2,7% dos narradores, felizmente envelhece.

E como toda fotografia, afinal, alguma hora precisa ser refeita, os dados de Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado ganham continuidade em Uma história da literatura brasileira contemporânea: A narrativa, livro a ser lançado por Regina Dalcastagnè em 2023 e que abordará diferentes questões sobre nossa produção a partir dos anos 1970. Além disso, a professora coordena um novo estudo e criação de um portal crítico chamado Praça Clóvis: Mapeamento crítico da literatura brasileira contemporânea, com recorte dos anos 1970 aos dias atuais, com a participação de dezenas de pesquisadores do Brasil e do exterior.

 

NOTAS

[nota 1] Pierre Bourdieu, As regras da arte: Gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Tradução de Maria Lucia Machado. Citação nas p. 72-73.

[nota 2] O artigo Ausências e estereótipos no romance brasileiro das últimas décadas: Alterações e continuidades pode ser listo neste link: revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fale/article/view/40429/26848

[nota 3] Apesar da pesquisa de 2012 só analisar romances, o critério aqui escolhido (mostrar nomes novos indicados nos prêmios) enfatiza a composição em curso de uma nova fotografia, o que permite agregar autorias de outros gêneros literários.

[nota 4] Ver: publishnews.com.br/materias/2022/07/12/lista-nielsen-publishnews-consolida-lideres-de-vendas-no-primeiro-semestre