A quem se escuta quando se escreve? Como um escritor atende ao apelo da fala? Aquele que dedica sua vida à escrita, sob os olhares desviantes de Orfeu ou de Exu, jamais se encontra na obra que constrói. Ao encará-la, descobre seu eu permanentemente em obra, retornando à noite de onde sua voz provém. À medida que se deixa atravessar para esse outro lado, este a que chamamos escritor vê-se ditado pelo imprevisível de um acontecimento, fazendo-se canto sem saber quem encanta, voz a invocar a pluralidade que fala no lugar do poeta. Nesse evento no qual a língua se ritualiza, vida, escrita e escuta parecem uma coisa só, integralmente dedicadas aos mistérios que as constituem.
Edimilson de Almeida Pereira, professor titular na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisador das culturas e saberes populares e da literatura, poeta e ainda autor de romances e livros infantojuvenis, é exemplo singular de um intelectual que, sensível a essa condição do escritor como sujeito recriado incessantemente pela enunciação, faz obra desde um lugar tensionado pelo enigma do próprio. O ofício da escrita é vivenciado como mediação entre o próximo e o longínquo, submetendo-o às dicções mais díspares, a línguas as mais variadas, nos campos da estética, do sagrado e das tradições, acompanhado de uma reflexão sobre a noção de origem que inquieta todas essas práticas. É, então, por essa espécie de compromisso com um sentido de glosa, arcaico e excessivo da vida, que Edimilson não cede nem a um discurso cristalizado, conformado com o seu lugar de enunciação, nem a uma dicção tomada pela pulsão e contrária à história. Assim, devolve-nos uma obra fundamentada por uma visão crítica na qual o mundo é restituído à categoria de evento, marcado pela contingência e alheio às apropriações.
Na introdução à nova edição de Orfe(x)u e Exunouveau: Análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira (2022), um discreto comentário do pesquisador a respeito do uso da terceira pessoa para a análise das variações nas poéticas afrodescendentes que entrelaçam referências das matrizes banto, iorubá e grega, revela o elo entre estética e política que esteia sua posição como crítico (inclusive de si mesmo). Contrariamente ao que é esperado de textos de natureza memorialística, nos quais o autor comenta um conjunto de produções no qual sua obra se inclui, Edimilson faz variar-se enquanto pronome, inscrevendo-se como “um” entre “eles”: “por uma questão estilística, mantivemos a terceira pessoa, pois associamos, com esse recurso, o trabalho atual aos demais que o antecederam e foram redigidos da mesma forma”. A adoção desse ponto de vista é coerente com uma visão de mundo, ou com um mundo mesmo, na qual a relação com o outro é condição de possibilidade de qualquer comunidade ou dom. Portando-se como poeta entre poetas, narrador entre narradores, jamais como um intelectual para quem origem é sinônimo de original, no sentido do nunca antes feito ou do instante primeiro em absoluto, Edimilson transmite uma ideia de saber apreendida em continuidade e por meio daqueles com quem sempre manteve-se em afinidade: as comunidades periféricas, os trabalhadores e as trabalhadoras rurais, os pequenos agricultores, a classe operária, os benzedeiros e as benzedeiras, os descendentes e herdeiros da diáspora africana.
A rigor, a adesão ao ponto de vista de um “ele”, deste ser permanentemente ao lado, diz muito de um trabalho de vida do pensador nascido em Juiz de Fora (MG), licenciado em Letras no ano de 1986, período em que já voltava o olhar para as relações sociais e simbólicas de eventos populares como o Carnaval e o Congado, interesse que, posteriormente, culminou em uma pesquisa de mestrado sobre o sincretismo no Candombe (ritual que faz parte do Congado), defendida em 1996 e publicada com o título Os tambores estão frios (2005). Nas incursões pelo universo das festividades e dos rituais religiosos de comunidades afrodescendentes como os Arturos da cidade mineira de Contagem, Edimilson fez dos pronomes pessoais, isto é, da pessoalidade, um campo experimental, conjugando a análise desses eventos com um pensamento sobre os modos de dizer a divisão entre sujeito do conhecimento e objeto a ser conhecido. Ele ou eles são de quem falamos, não com quem falamos – são, portanto, discursivamente, os que se lançam ao mais exterior, distanciados de nós. Assim, levando sempre em conta o ponto de vista daquele de quem se fala, sob o traço de seu afastamento, Edimilson, nos poemas dessa época, arrisca um pensamento sobre os limites da relação entre o observador moderno e a atualidade de um momento em que determinada coletividade, através de ritmos, normas e cantos, reafirma o seu processo fundante. Refletindo sobre os sentidos e efeitos de um colocar-se ao lado como gesto de reconhecimento, o poeta escreve: “Sou de ver o baile/ Não danço não compreendo/ a coisa rara/ devorada// Quem respira ao lado/ não sabe o eterno enigma./ O que está aqui/ incapturável”.
Ainda que no poema Lapassi o eu alegue não dançar, a trajetória do pesquisador desconstrói a imobilidade diante do que Furio Jesi chamou de uma “ciência do não-conhecer”, dado que, para o mitólogo italiano, a festa representaria um limite ao saber dos etnógrafos e antropólogos. Entre a graduação e o mestrado citado antes, o pesquisador mineiro ingressou com outro projeto de mestrado, sobre a obra do escritor português António Lobo Antunes, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para onde depois retornou, já no doutorado em Comunicação, com o intuito de investigar a exclusão étnica e a violência nos discursos da cultura brasileira. Ardis da imagem, hoje editado pela Mazza Edições (responsável também por alguns de seus livros de poesia) e pela Editora PUC Minas, resulta da tese em que se examinam os processos de fixação dos significantes “cor da pele” em lugares determinados pela sociedade. Assim, quanto mais sua pesquisa se volta para os processos de cristalização e imobilização do negro, próprios à construção dos estereótipos racistas, mais o poeta-pesquisador dança, colocando-se ao lado, como quem procura uma posição ética entre a observação e a intervenção. Desse período de formação universitária, referente às últimas décadas do século XX e início do século XXI, registra-se, sintomaticamente, uma forte pulsão de desterritorialização: das Letras à Ciência da Religião, da Comunicação à Etnografia e à Antropologia, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, do Brasil a Portugal e à África. Para aquele que se aventura, o que se apresenta mais estrangeiro é seu destino incontornável. O sentido mesmo de liberdade.
Tamanho compromisso com a pesquisa e com a literatura, em publicações preparadas e lançadas ano a ano, revela afinidade com o caráter coreográfico e dinâmico das festas de seus interesses iniciais. A rigor, essa diversificada obra em andamento se alia em uma comum e insistente preocupação com o destino da coletividade, passagem reversível do eu ao nós, cuja força de propagação é tanto problematizada nos estudos sobre as formas cristalizantes de estetização do corpo negro e dos corpos historicamente subalternizados quanto afirmada no ritmo totalizante dos tambores das festividades, no qual está em jogo a condução das partes ao centro. Aqui, é o tambor quem fala por todos, como também a festa fala de fora para dentro, exibindo-se aos olhos daqueles que, festejando, fazem-se ver uns pelos outros.
Portanto, se o mundo é tratado como um evento pelas investigações de Edimilson, reconhece-se o conflito entre posse e contemplação, a exemplo do que expressa uma das cantigas do Candombe recolhidas pelo poeta em Ouro Preto da palavra (2003): “Ei, quem num pode com ele/ Dexa no chão/ Oi, dexa no chão”. No sagrado, mito e rito fazem uma unidade. Mas, no jogo das palavras escritas, ou a ação conserva apenas o rito, ou o verbal faz memória do mito, como o poema intitulado O passista sugere: “O tempo e seu calcanhar/ são misteriosos como meus passos/ são a festa do meu corpo.// Recito a religião dos calos”. Assim, a passagem do sagrado popular ao profano, do eu ao ele ou ao nós, da língua materna à língua estrangeira (nas frequentes traduções e participações em antologias em francês, inglês e italiano), atesta uma vida e um projeto de obra interpelados pelo dom e pela tradição, por isso que recebe e que promete a permeabilidade entre os sujeitos, entre os tempos, entre as culturas e suas formas de expressão, mas que não deixa de causar calos, ao se andar por um chão que logo se retira, misteriosamente.
Entregando-se a trabalhos de campo e debruçando-se em acervos, entre a escuta, a leitura e a transcrição de todo um repertório de estórias, mitopoéticas, narrativas orais e manuscritos, Edimilson revira a materialidade deliberadamente silenciada ou estrategicamente camuflada de comunidades periféricas, revelando, ao fim e ao cabo, o que Derrida nomeou mal de arquivo como a consignação constante entre o começo e o comando, o constituído e o constituinte, o patente e o latente, e que funda as verdades sobre as quais se constroem o discurso histórico. A rigor, trata-se de uma outra camada do interesse sempre retomado do pesquisador pela relação entre determinado fato e sua origem, derivando seja na escavação dos sedimentos que tornaram possível determinada decantação, seja na tentativa de apanhar tal fato em ato, flagrando-o em sua irrupção atualizante.
Assim se benze em Minas Gerais – obra em parceria com a também professora do Departamento de Letras da UFJF, Núbia Pereira de Magalhães Gomes, importante colaboradora e parceira no antigo projeto Minas & Mineiros – é exemplo desse gesto de escavação. O livro é um arquivo de fórmulas de benzeção, patuás e ensalmos, além da descrição sensível e apurada de um evento para o qual pesam fatores linguísticos, sociológicos, históricos e estéticos. O benzedeiro é analisado pela figura do dom, especificamente de um dom para a cura por meio da palavra, sendo ele parte de um contexto mais amplo no qual outros agentes também recebem papéis – o que leva os pesquisadores a nomearem tal universo simbólico de mundo encaixado. Sobre essa mesma imagem da terra arredondada, como gostava de dizer Lévi-Strauss, os etnólogos Malinowski e Marcel Mauss mostraram que é na tríade do dar, do receber e do retribuir que a reciprocidade se fundamenta como código moral e lógica social. Nas palavras de Edimilson e Núbia, “a troca de graças” referente ao gesto “de dar de graça o que de graça se recebeu” evidencia perfeitamente como o presente é a retribuição de algo recebido anteriormente, ainda que se configure “muito mais um agrado do que um pagamento”. A lógica de encadeamentos mútuos que leva benzedores e benzidos a se presentearem e contrapresentearem-se conceitualiza um universo específico no qual uma coisa tende sempre a voltar ao lugar de onde partiu ou a produzir um equivalente. E assim o mundo se encaixa.
Um dos poemas de Edimilson, entretanto, nos alerta: “A dívida mais onerosa, a herança”. Tamanha responsabilidade por portar uma palavra de cura é o que faz com que Inocêncio, personagem da prosa ficcional O ausente (2020), nascido empelicado e marcado pela ambiguidade do imaginário sobrenatural, recuse assujeitar-se por completo a essa circularidade mágica, em nome do seu direito à escolha. Diante de um destino selado, no qual danação e dádiva se confundem, Inocêncio hesita, não sem recorrer à violência característica dos mundos encaixados: “Quero me matar porque rompi um pacto. Nasci para curar mas, pelo desprezo à convicção, entendi que duvidar me dava mais alegria. […] Segui, no entanto, errando às expensas dos meus acertos”. Inocêncio é aquele que sintetiza, por uma língua dos contrários alimentada constantemente pelo metafórico, a imagem do curandeiro em seus impasses entre tradição e pulsão lúdica, repetição e improviso, afeto e efeito. Tal imagem não deixa de se revelar versão de um mesmo paradigma órfico do qual participam as figuras do xamã e do performer, sendo o poeta alguém que toma emprestada a palavra de um lugar desconhecido, nomeado por Orfeu de Eurídice, por poetas antigos de musa ou ritmo, por griots de ancestralidade. A partir daí é a língua quem fala: “Olhar um pedaço do homem e falar dele é uma maneira de explorar o seu coração, que é, sim, um tempo em círculo: sem o sinal de quem o começou. […] Não falo não para alguém me entender, mas para deixar que eu habite nele e sugue a sua fala, abelha que sou, fabricante de estranho mel”.
Inocêncio é um personagem de ficção, mas é também relíquia nos arquivos em movimento das tradições populares. Através de figuras como essas, Edimilson estreita as relações entre pesquisa acadêmica, poéticas tradicionais e literatura, propondo outros começos e comandos em alternativa aos modelos estéticos e culturais que se querem únicos. Nessa reescrita permanente das origens, confronta, ainda, aquele vício apontado pelo próprio pesquisador, de nos definirmos “como uma sociedade costurada com as linhas do contraste e da síntese”, como diz em Orfe(x)u e Exunouveau. Não por acaso, à importância de outros desenhos sociais, de uma renovação que possa surgir do gesto de reinterpretação dos arquivos, Edimilson responde endereçando-se também ao público infantojuvenil e aos que estão comprometidos com a educação, em Malungos na escola (2007), e em seus livros ilustrados, Cada um seu canto, ilustrado primeiramente por Hugo Almeida (1998) e em outra edição por Edson Ikê (2022), Os reizinhos do Congo (2004) elaborado com a ilustradora Graça Lima, Poemas para ler com palmas (2017) feito em parceira com Maurício Negro, entre outros títulos construídos na relação entre texto e imagem.
Da leitura dessas obras arqueológicas e antológicas, perguntamo-nos, portanto, o que muda quando o ponto de vista desse material intencionalmente arquivado ou rasurado é o do sujeito embarcado à força em um porão ou o de filhos, netos e companheiros desses personagens, cuja herança é transmitida e reelaborada política e esteticamente? Muda-se tudo, se é que não se muda o próprio mundo. Essa irredutibilidade entre vivências evidencia que a necessidade não é a única a responder pelas formas estéticas das tradições populares ou das poéticas afro-diaspóricas, mas também o são o desejo, a recusa, os jogos e as combinações. Edimilson aprende das festas e rituais populares não simplesmente um modo de observá-las, mas a imaginar como os seus próprios agentes se viam em ato no ritual. A proposta é, poeticamente, ver esse mundo outro, e experimentá-lo como possível. O que não deixa de ecoar, sintomaticamente, a proposta do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, de um pensamento ameríndio, segundo o qual todos os seres veem o mundo da mesma forma, sendo que o que muda é o mundo visto por cada um, pois a maneira de ver está no corpo. Sendo assim, “o perspectivismo é um maneirismo corporal”, segundo Viveiros de Castro, ao pressupor que, por trás das semelhanças e afinidades, existem mundos distintos, isto é, equívocos fundamentais.
Quando Edimilson, em seu percurso teórico e poético, dá a ver toda uma diferença entre “este mundo” e “outro mundo”, pautada nas posições dos corpos negros, afro-diaspóricos e/ou oriundos de comunidades tradicionais, acaba por se afinar com um pensamento ameríndio no qual prevalece a instabilidade e a duração dos conflitos, lição aprendida também com Exu. É desse lugar vicário que o poeta e intelectual pondera sobre as relações entre realidade brasileira e expressões culturais, enfatizando o caráter agônico pelo qual a literatura, comprometida com uma posição crítico-maneirista em vez de lúdico-barroca, desestabiliza as hierarquias e as verdades assentes, desnudando nosso vício de tomarmos constantemente a parte pelo todo. Aí também a angústia trabalha, como no maneirismo corporal do perspectivismo, substituindo a negociação em que teoricamente todo mundo sai ganhando para um risco de todos perderem, no limite, o mundo próprio.
Depois de um esforço reiterado em direção aos simbolismos populares a culminar nos livros Os Arturos: Negras raízes mineiras (2000), Flor do não esquecimento (2002) e Ouro Preto da palavra, é também a obra poética de Edimilson que se altera pelo ponto de vista alheio, compactuando com os riscos e as dádivas que essa incursão acarreta. Diz-nos o poema Argonauta: “A primeira lição do arqueólogo é não se reconhecer nos ossos que recupera”. Um dos predicados mais marcantes de sua obra literária diz respeito, precisamente, a este trabalho com as resistências e com os equívocos do reconhecimento. Sua recepção ressaltou isto desde o princípio, a exemplo da resenha de Ricardo Aleixo, coautor com Edimilson de A roda do mundo (1996), que apontou, em 1990: “Ô Lapassi & outros ritmos de ouvido, de Edimilson de Almeida Pereira, pode soar, à primeira leitura, como um livro difícil, estranho mesmo, em relação à poesia que se escreve atualmente no País, mas não diante da obra já publicada desse juizforano de 26 anos de idade e 15 de criação poética”. Incorporando os cantopoemas do Congado, as poéticas sagrado-profanas dos orikis, as metáforas dos vissungos, a condição verbivocovisual dos pontos riscados da umbanda, as montagens mitológicas do candomblé e as técnicas surrealistas, os poemas de Edimilson, ritual e esteticamente “multiplicam as cabeças”, tal como sinaliza o professor Roberto Zular em prefácio a poesia + (antologia 1985-2019). O difícil, portanto, vem dessa bricolagem, ars combinatoria de que nenhuma imagem recuperada é exemplo único e privilegiado.
Portanto, a obra de Edimilson, se se olhasse no espelho, ver-se-ia com a dificuldade de que é feita, ao escrever o que se apaga, sobre o que se retira ou foi retirado, fazendo cair, por consequência e por projeto, o princípio arcôntico de quem fala em nome da lei no singular. Trata-se, a rigor, de escutar, e levar a sério, o ímpeto da destruição, o sintoma do mal-estar e seus maquinismos negacionistas, o trabalho da angústia em separar o que precisa ser separado. Com Lobo Antunes, psiquiatra português que, depois de uma experiência em África durante as guerras de descolonização, sente-se coagido a relatar o horror vivido, e, diferentemente, com as poéticas afro-diaspóricas a nos ensinarem sobre como se diz o indizível, desvela-se uma demanda forte o bastante para nos fazer entender, como em Orf(exu) e Exunouveau, que “sem um enfrentamento de nossos gestos mais atrozes – com a intenção de solucionar as injustiças produzidas por eles – nenhum de nossos gestos de gentileza terá um sentido social pleno”.
Em um de seus poemas cujo título é homônimo ao livro do qual faz parte, Caderno de retorno (2017), lemos os seguintes versos: “Nos fundos do país a festa não termina/ será uma para disfarçar outra guerrilha?/ Quem a percorre/ desde a sala/ pensa nos esqueletos/ que trepidam sobre outros emudecidos”. Edimilson ensina-nos que, assim como o martinicano Aimé Césaire, em seu Cahier d’un retour au pays natal, retornou para um futuro ancestral (lembrando as palavras de Ailton Krenak), fazendo justiça aos emudecidos, também para um pesquisador das culturas tradicionais, importa marcar, remarcar, ressignificar, no passado, o que no presente lampeja. É preciso, sim, retornar, até que das diferenças entre “este mundo” e “outro mundo” devenha um futuro outro, menos ameaçado pelo fim e mais aberto ao interminável de um evento que deve sua importância à memória, à mudança e à renovação.
Com essa obra feita de encruzilhadas, fugas forçadas, traduções e intraduzíveis, migrações, travessias, atravessamentos, rituais e maneirismos corporais, aprende-se muito. Aprende-se, ainda, no que nela trabalha junto à densidade dos mistérios dos povos tradicionais e dos povos por vir, comunidade daqueles que se solidarizam secretamente uns com os outros. No segredo de uma ética que entrelaça vida e obra, a poesia assegurando a verdade pujante e a vasta matéria desse evento, comemoramos os 60 anos desse autor, para quem todo eu é antecedido pelo que vem, estrangeiro, incomum e que existe desde antes. Outrem que nos dita, nos recita, nos interpela, nos reivindica, mas também participa da festa, comemorando conosco o que merece e precisa ser celebrado.