Há um poema de William Carlos Williams (1883-1963) em que uma folha de papel pardo, do tamanho de um homem, é arrastada pelo vento. Ela é então atropelada por um automóvel para, enfim, se reerguer e continuar sua dança pelos ares. Publicado em 1938, o poema integra uma antologia da poesia escrita por Williams entre 1906 e aquele final da década de 1930 — um volume que simbolizaria, como o próprio poeta viria a lembrar décadas mais tarde, a oportunidade para que ele observasse o desenvolvimento da principal questão que havia movido seu projeto estético: a busca por uma métrica e uma linguagem que fossem, em seu âmago, estadunidenses; próprias daquele solo, daquele país, daquela gente. Que não fossem herdadas do colonialismo britânico, mas sim genuínas e originárias dali.
Curioso, no entanto, é notar que nesse mesmo poema — The term, traduzido como A duração por José Paulo Paes na antologia A cidade esquecida e outros poemas, que a Companhia das Letras publicou em 1987 sob o título Poemas e agora reedita após décadas fora de catálogo —, assoma o papel pardo que em 1938 já ocupava a mesa e a mente de Williams há quase duas décadas, na forma de imensos envelopes nos quais ele amontoava páginas datilografadas, cartas, anotações e recortes de jornal para o poema que viria a ser Paterson. É este longo poema, que Williams arquitetou como um objeto dividido em quatro livros, acabou escrevendo cinco e ainda trabalhava em um sexto volume à época de sua morte em 1963, que agora aparece na íntegra em português brasileiro, na tradução de Ricardo Rizzo para o Círculo de Poemas. O livro chega nas livrarias em setembro.
Embora aninhado dentro de classificações e termos como “poema épico” e magnum opus, Paterson é antes de tudo um objeto poético com duas facetas que saltam aos olhos: primeiro, sua qualidade de espelho e mapa da trajetória de William Carlos Williams; segundo, sua preocupação com aquilo que há de menor — com as especificidades ou particularidades que compõem um todo. Concebido pelo poeta como um “poema longo em quatro partes — em que um homem é ele mesmo uma cidade”, Paterson convoca e tensiona dualidades indissociáveis da modernidade, enquanto momento histórico, e do modernismo enquanto movimento artístico.
Ainda que o primeiro volume de Paterson tenha sido publicado somente em 1946, o próprio Williams reconhece que a gênese do poema aconteceu entre os anos de 1925 e 1927. Assim como vários de seus contemporâneos, ele havia recebido o impacto do Ulysses de James Joyce lá em 1922 — mas, naquele texto onde muitos observaram a inventividade narrativa e a experimentação linguística, o poeta enxergou a cidade enquanto protagonista. Ao longo das próximas décadas, Williams trabalharia continuamente no desenvolvimento dessa costura tão central para a experiência moderna: o homem que existe em uma cidade (a particularidade dentro de um todo), e a cidade que existe dentro de um homem (a vastidão dentro de uma particularidade).
Se a cidade do poema Paterson não tem mapas ou bússolas, é porque ela própria se coloca como uma espécie de cartografia da escrita do poeta; prova disso são os antecessores de Paterson, que aparecem dispersos em outros escritos publicados desde anos 1920 e que integrariam partes do poema. Do mesmo modo, Paterson carrega também menções e experimentações sobre o último livro que o poeta publicou em vida: Pictures from Brueghel and other poems, de 1962. Exemplo maior é aquele identificado pela pesquisadora brasileira Amarílis Lage de Macedo, especialista na obra do poeta, que em sua dissertação de mestrado pontuou no livro cinco de Paterson uma descrição do quadro The adoration of the magi (1564) — tela de Brueghel que retornaria no livro de 1962, na forma de um novo poema.
É nas páginas de Paterson ainda que Williams concretiza o seu “pé variável” — uma elaboração métrica para esculpir o verso livre. Considerada por muitos pesquisadores como complexa demais e traduzida por José Paulo Paes, em seu prefácio à edição da Companhia das Letras, como um “deixar-se guiar unicamente pelos ritmos da fala e não pelas regras mecânicas da escansão”, o pé variável seria uma estratégia que permitiria aproximar a estrutura do poema à estrutura maleável da vida: uma solução para que, segundo Williams, o verso livre não se tornasse livre mas sim variável, como são todas as coisas da vida; deixando, assim, que a vida e a fala cotidianas entrassem no poema.
Tal concretização não é acidental: foi nas águas das cataratas do Rio Passaic, localizadas na cidade de Paterson, que de fato existe, que o poeta encontrou aquela linguagem que tanto havia buscado. Como ele próprio afirma em Paterson, “o barulho das cataratas me parecia constituir uma linguagem que estávamos e estamos procurando, e minha busca […] tornava-se a luta para interpretar e usar essa linguagem. Essa é a substância do poema”. Ler Paterson, portanto, é ler as próprias ruas compostas por palavras, versos e técnicas que Williams elaborou ao longo de sua vida; é ouvir a linguagem que ele moldou a partir da terra estadunidense que margeia as águas da cidade. Paterson acompanha todo o percurso poético de Williams; ao mesmo tempo, esse percurso poético foi margeando e construindo Paterson.
UMA COLAGEM DE VOZES
Em sua dimensão de cidade, o poema narra e acompanha a história de um território tipicamente estadunidense: sua urbanização e o nascimento de seus subúrbios, igrejas e fábricas; o sangue derramado pelo massacre dos povos originários; a construção, a ruptura e constante reformulação do “sonho americano” por parte de importantes figuras históricas e por parte daqueles que efetivamente ergueram as paredes do país — os povos negros e os imigrantes pobres.
Mas uma cidade é feita também das histórias que aconteceram ali: as ruas guardam memórias dos passos; os muros, o toque das mãos; o ar, o som das palavras. Nesse sentido, é indiscutível aquilo que o pesquisador João Pedro Moura Alves Fernandes, também especialista em Williams, identifica como um olhar adquirido pelo poeta em sua longa carreira como médico: as existências singulares das famílias que viviam (e ainda vivem, hoje) nas margens das cidades, na condição de massa precária — e a forma como essas pessoas andam pelo mundo.
É por isso, talvez, que Paterson é também o Dr. Paterson — o homem concebido pelo poeta, que cresce e percorre os episódios do poema. Só que Paterson-homem não se coloca como protagonista, herói ou tampouco voz dominadora das páginas. Na realidade, ele é uma das muitas figuras interlocutoras mais recorrentes dentro de um poema construído num caleidoscópio de vozes; um poema que se elabora a partir de uma constante mudança de perspectivas e pontos narrativos — amparado por uma técnica na qual abundam recortes, colagens e importações.
Espaçados por entre as páginas de Paterson estão trechos de livros de história, reportagens antigas de jornal, passagens literárias e cartas que Williams recebeu. Essa técnica — ora chamada de colagem, ora de importação, mas integral ao movimento modernista —, embora presente em projetos de prosa e poesia do poeta lá em 1920, ganha corpo considerável em Paterson. A presença desses recortes traz novos interlocutores que populam a cidade de Paterson e cruzam o caminho do Dr. Paterson: há um trecho de um romance de Mary McCarthy; cartas de Ezra Pound e de um jovem Allen Ginsberg; e, notoriamente, longas cartas da poeta Marcia Nardi.
A presença dessas epístolas é identificada e referenciada ao fim da tradução de Rizzo para o Círculo de Poemas, que conta com diversos materiais de apoio — mapas — para a leitura, algo que por sorte diverge do que costuma acontecer com volumes de poesia traduzida no Brasil. Há uma nota à edição, importantes notas de fim e também um posfácio do tradutor. E é a tradução, por sua vez, que estabelece uma “interpenetração, mão dupla” com o Paterson escrito no inglês estadunidense de Williams. Se por um lado o pé variável não se consolida em todos os momentos da tradução, por outro há diversas instâncias em que o som ou outras estratégias poéticas são retrabalhadas e reestruturadas: repetições de palavras são transformadas em assonâncias; interjeições e onomatopeias encontram seus pares em nossa língua falada — num movimento alinhado à própria estética de Williams, tão pautada em elementos como o uso coloquial da linguagem, temas à primeira vista prosaicos e construções sintáticas pouco complexas.
É essa interpenetração que permite uma travessia especialmente singular da tradução, na qual a própria terra do poema — que fundamenta a cidade e o homem, encerra o livro um e era o “pai de toda fala” (father) em inglês — passa a ser a “mãe de toda fala”. Antes pai e agora mãe, essa terra estadunidense que enche os pulmões com o português brasileiro abre novas possibilidades para novas leituras do poema.
O CORPO DA LINGUAGEM
Entre o burburinho da cidade de Paterson e das vozes que se somam à do Dr. Paterson, Williams constrói um poema que, embora “épico” em sua classificação, se volta sobretudo para as particularidades que produzem o começo — as flores, tão presentes no poema e tão notoriamente associadas às mulheres ao longo dos cinco livros; mas também as pérolas no oceano, as crianças, as pessoas comuns que se tornam protagonistas de manchetes de jornal.
São esses elementos, pequenos e específicos, que Williams tenta emoldurar dentro de uma linguagem que “cai em cascatas no invisível, além e acima”, ciente ele próprio de que é necessário capturá-las porque em algum momento cada um desses protagonistas há de morrer — e, como quer o poema, morrer é perder a linguagem; é cessar de contar e registrar uma história. Nesse sentido, ler Paterson é também ler um corpo que envelhece; acompanhar os passos de um poeta que se deparava com sua mortalidade; ouvir o bater do pé de Williams, marcando o ritmo de seus versos em sua casa na cidade de Rutherford — que, aliás, fica a poucos minutos de distância das ruas e cataratas de Paterson.