Passados vinte anos de sua morte, o nome de Haroldo de Campos (1929-2003) ocupa um lugar difícil no contexto da vida literária brasileira. Ao lado da relativa institucionalização, que tende a transformar suas proposições em uma espécie de doxa, a simples menção ao seu trabalho também desperta resistências endurecidas em outros círculos. Não seria despropositado enxergar nesse cenário uma das consequências possíveis do modo de atuação da própria vanguarda, que sempre encarou a vida literária como uma espécie de combate – uma operação voluntariamente parcial (neste caso, crítica e refletida) de separação e hierarquização. A propósito de Oswald de Andrade e de sua tardia canonização, Haroldo lembrava do temperamento difícil do escritor, mas também da radicalidade e da singularidade do projeto literário que atraía para si uma reação bem distinta da boa vontade crítica.
Não é o caso, porém, de atribuir essa complexa situação exclusivamente às polêmicas que o poeta suscitou e cultivou ao longo de sua trajetória, seja com o campo mais tradicional, passadista, seja com a militância social, quando esta subordina a discussão poética ao gerenciamento cultural. Debates que teve com figuras como Wilson Martins e Antonio Candido são bem conhecidos. Já o seu amor confesso pelo espaço paulistano (facilmente confundido com um “paulistocentrismo”), na escala geográfica dos regionalismos também colabora para esse cenário. Note-se que, à amplitude nacional dos interesses literários da Poesia Concreta, se seguiu todo o esforço (particularmente de Haroldo) para internacionalizar o projeto neobarroco (e antropofágico), na proximidade com figuras importantes da literatura latino-americana (Severo Sarduy, Néstor Perlongher ou Lezama Lima).
Há muitos desses ruídos no entre-lugar ocupado pela obra de Haroldo de Campos – sem dúvida, uma das mais densas, coerentes e inventivas da poesia brasileira. Entretanto, mais do que requisitar revisões ou recuperações particulares, o trabalho do poeta-crítico parece solicitar uma leitura que contextualize historicamente os problemas que foram se associando aos seus ressurgimentos. Se sua morte faz vinte anos, o conhecido ensaio sobre a “poesia pós-utópica” fará quarenta, e já temos sessenta anos dos primeiros fragmentos do longo poema Galáxias. Juntamente com o período da Poesia Concreta, essa trajetória parece fornecer uma espécie de síntese dos desdobramentos da modernidade e dos desafios da poesia no contemporâneo: a obra de Haroldo de Campos abriga proposições e contradições frutíferas que colocam em jogo nossa relação com a vanguarda, com a questão da diversidade (“pluralização das poéticas possíveis”) e com a contínua necessidade crítica da tradução. Trata-se de um dos raros autores de sua geração que, ainda em pleno vigor de produção teórica e criativa, abraçou a questão do “fim das vanguardas” (embora a anunciasse no início dos anos 1980, datava-a do final dos anos 1960), procurando tirar dela consequências. A obra poética que sucede A educação dos cinco sentidos (1985), por exemplo, retoma e transforma o trabalho anterior e refaz os laços com a tradição, incorporando inúmeras figuras do “fim” em conexão com a audácia, ou a desmesura (húbris, como preferia) do poeta.
Não seria descabido ler esse percurso como aprofundamento de uma espécie de “defesa e ilustração da poesia”. Já no início dos anos 1950, Haroldo convocaria a expressão extraída do tratado de Joachim Du Bellay para, no poema Ciropédia ou a educação do príncipe (1951), fazer um elogio à língua portuguesa, convertido em elogio ao furor verbal da poesia. No outro extremo, os poemas de Entremilênios (2009), publicados postumamente, fazem comparecer a “musa” como agente capaz de responder ao “caos” e à precariedade de sentido dos horrores da vida capitalista contemporânea. Como poeta moderno, ao ser confrontado com a ideia de “crise”, Haroldo se coloca diante da responsabilidade pelos estados futuros da poesia; e parece assumir essa tarefa, na última fase de seu trabalho, de modo particularmente enfático, voluntarioso mesmo, a partir das figurações de seu nome próprio e de sua história intelectual.
Se sua obra poética começa com um livro repleto de formas tradicionais do verso, o último volume publicado em vida (A máquina do mundo repensada, 2000) é um poema todo escrito em tercetos, à maneira de Dante. O compromisso inicial com a tradição erudita adquire, com o tempo, uma forte inflexão de vanguarda (toda poesia é vista como “concreta”, de Homero a Susan Howe) e acaba por se concluir de modo relativamente paródico como interrogação sobre o lugar da poesia no mundo contemporâneo, colocando no mesmo plano a coragem agônica e a potência alegórica. Reabrir a questão da “máquina do mundo” (depois da alegada recusa de Drummond e em diálogo direto com a física moderna) tem um sentido forte, nesse contexto, evidenciando que a poesia não se submete simplesmente à “vida literária” ou à ideia social da cultura (das quais certamente participa), colocando-se igualmente como sujeito da compreensão cosmológica e sapiencial (“qohelética”) do nosso mundo.
Haroldo tanto se interessa pelas pontes diretas com a atividade social (chegando mesmo à esfera político-eleitoral, ao escrever textos de campanha para Suplicy e Lula, nos anos 1990) quanto pelos enigmas cifrados do universo. Nesse sentido, sua atuação tem mais de um ponto de contato com a experiência de Mallarmé. Não o Mallarmé popularizado, entre nós, graças à surrada ideia da “poesia pura”; nem exclusivamente aquele da “revolução” formal e gráfica de Un coup de dés; talvez nem mesmo o Mallarmé que o próprio Haroldo preferiu divulgar. Antes, o Mallarmé que praticava uma atenção bastante fina para com a história contemporânea (respondendo inclusive por questões como a do direito autoral, ou por ataques a bomba cometidos por amigos anarquistas), geralmente em conexão com a defesa da “tarefa” comunitária a ser assumida pelo artista poeta.
Ao lado desse empenho histórico, não menos importante é a compreensão das atribuições da poesia em sua “ação restrita” (como dizia o poeta francês): a Haroldo de Campos, também pareceu necessário sustentar a “posição de lótus” (verso do poema Meninos eu vi) para “manter a enteléquia ativa” (de Opúsculo goetheano). Trata-se aí de um gesto de resistência, aspecto marcante de sua trajetória pessoal e de seu convívio no grupo Noigandres (com o irmão Augusto de Campos e Décio Pignatari), tanto por designar uma diferença em relação à “geleia geral” quanto pela demonstração de força e inflexibilidade. De fato, a cosmogonia poética não deixa de ser uma política. Resistência ou participação, a poesia coloca em primeiro plano o desafio da soberania que, em Haroldo, se comunica com o direito luciferino da transgressão.
Os leitores de Haroldo de Campos sabem que suas metamorfoses envolvem um deslocamento dos interesses pela matemática, pela cibernética e pela semiótica na direção da antropofagia, do barroco latino-americano e de teorias (como a da desconstrução) que questionam os discursos da “origem” e da “estrutura”. Nesse sentido, os movimentos do pensamento haroldiano aparentemente acompanham o percurso histórico do Estruturalismo para o Pós-estruturalismo, talvez antecipando-o em muitos pontos (como dizia Jacques Derrida, em forma de homenagem à trajetória universitária de Haroldo, no ano de 1996). Porém, o mais importante aí é constatar que, apesar de toda sua paixão poundiana pela distinção e pela eleição, apesar do gosto pelas figuras do fim, a perspectiva que caracteriza o esforço crítico do poeta não pressupõe o “fim da história”, não se acomoda facilmente com o dispositivo de um “interpretante final”.
A obra de Haroldo de Campos pode parecer distante de nós, quando a enxergamos pelo viés (muito recente) da politização da diversidade, da resposta ampla e genérica (certamente, necessária) às violências do presente. Mas é preciso notar que, historicamente, ela se empenhou de modo exemplar na ideia de abertura, ao assumir o ônus e a aventura da pluralidade, repensando o lugar da poesia à luz de suas novas situações. Como não poderia deixar de ser, carrega suas limitações, suas excentricidades e suas contradições. A consciência da diferença histórica não se dá sem tensão, é claro, na medida em que busca uma espécie de virtude, que é o mérito de consistência, de coerência interna – por isso mesmo, não se pode confundir esse processo exclusivamente com uma estratégia narcísica ou com a monumentalização do passado.
Por todas essas razões, não seria difícil aplicar a Haroldo a expressão “extremo-contemporâneo” (divulgada por Michel Deguy, um de seus amigos franceses), designando um estar radicalmente no presente. No caso de Haroldo, isso se dá certamente pela capacidade de colocar em ação o “dispositivo crítico indispensável” da “operação tradutória”. A tradução (diz Haroldo no final de seu ensaio sobre o pós-utópico) permite recombinar o passado e presentificá-lo como diferença. O tradutor de tantas línguas (que morreu sonhando em aprender o árabe e o iorubá) e de tantos poetas, pode-se dizer, foi também um autotradutor – tradutor de seus próprios estados pregressos – atuando por reconexões teóricas mediadas por uma escuta sensível da diferença histórica.
Se hoje os poetas surgidos nos anos 1970 parecem mais palatáveis para a institucionalização editorial ou midiática das obras do passado, é interessante observar o interesse renovado (inclusive internacional) por Haroldo de Campos. Sua releitura se manifesta na forma de trabalhos acadêmicos que parecem pouco dispostos a revolver os impasses do passado, mas que estão muito mais abertos ao que há de complexo, produtivo e transigente na figura do poeta.