O Brasil que Waly Salomão escreveu com o batom escarlate de Gal Costa é o espelho de um país que luta com afinco entre a luz e as sombras. As sensibilidades e potências que eles alinhavaram a quatro mãos, com os projetos Gal a todo vapor (1971), Festa do interior (1982) e Plural (1990), dialogam com a arena política e emocional de um país em conflito direto com a própria ideia de democracia. As palavras e a performance enquanto modo de vida de Waly foram projetadas pela garganta política de Gal, que, no início dos anos 1970, fez a contracultura brasileira alcançar decibéis inimagináveis em meio a uma terra em que o silêncio era violentamente compulsório. No arco final da ditadura militar, no início dos anos 1980, os dois retomaram a parceria partilhando da sagaz perspectiva de que uma postura festiva perante a vida seria a pá de cal certeira para o regime. Em 1990, mais um começo de década, eles assinalaram a parceria derradeira. Pareciam atestar que, apesar da retomada do voto direto no ano anterior, após duas décadas de obscurantismo político, a democracia recém-nascida parecia uma criança sorridente, feia e morta.
Centro de São Paulo, dezembro de 1968. Logo após o AI-5, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos em seus apartamentos e dentro de seis meses seriam exilados, o cenário era de terra arrasada. A cidade de São Paulo, onde Gal havia se estabelecido no ano anterior e chegara a morar com os amigos afastados, passava a ser cada vez mais inóspita. Depois de uma breve parceria com Tom Zé, com quem apresentou um show até julho de 1969, a cantora se aproximou de Jards Macalé, que se tornou um alicerce pessoal e musical fundamental. O futuro parceiro de Waly teve um papel fundamental na confecção do álbum Gal (1969), no qual, em Pulsars e quasars (composta pela dupla Capinan/Macalé), entre gritos e grunhidos, Gal expressa a mais completa tradução do momento: “Dos sóis, Cá e Gil me mandem notícias logo/ A sós, pulsos abertos, eu volto”. A parceria entre os dois foi frutífera: partilharam desde um show no Teatro Oficina, em novembro de 1969 (Gal Costa & Macalé), até a sociedade de uma empresa de gestão artística, a Tropicart, com Capinan e Paulinho da Viola. Após o fim da temporada no Oficina, Gal e Macalé partiram em definitivo para o Rio, cidade que havia recebido com entusiasmo uma temporada da cantora na boate Sucata, em abril de 1969. Buscavam, sobretudo, ares mais solares.
Pavilhão 2 do Carandiru, janeiro/fevereiro de 1970. Amigo de Caetano e Gil durante a explosão tropicalista, Waly já era uma figura relativamente próxima de Macalé e admirada por Gal em 1969, como ela mesma assevera na primeira gravação de Meu nome é Gal (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos), registrada no mesmo Gal (1969). No início de 1970, já estabelecida no Rio, Gal se integrava cada vez mais a uma rede de poetas, músicos, compositores, cineastas e artistas visuais ligados à vanguarda e à contracultura, o que simbolizava para ela tanto um consolo quanto a possibilidade de dar continuidade à experimentação estética acionada pelo germe tropicalista. No mesmo período, Waly vivia um pequeno inferno na capital paulista. O poeta foi detido por porte de maconha e passou dezoito dias encarcerado em uma cela do pavilhão dois da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, entre janeiro e fevereiro. No chão da prisão militar, rascunhou obstinadamente anotações febris que mais tarde seriam batizadas de Apontamentos do Pav Dois, texto que seria a pedra fundamental de sua provocativa estreia literária, Me segura qu’eu vou dar um troço, de 1972. Pouco depois de sua soltura, Waly comprou uma passagem só de ida para o Rio, onde uma movimentação contracultural em andamento parecia ter o dom sobrenatural de atenuar a atmosfera de terror de então.
Zona Sul do Rio de Janeiro, outono de 1970. Ao chegar na capital carioca, Waly encontrou amigos próximos, como Hélio Oiticica e Duda Machado, envolvidos diretamente com a carreira de Gal. O adensamento da relação com Macalé ocorreu nesse contexto, marcado pela consolidação de um repertório e de uma linguagem musical para uma Gal pós-tropicalista. Desolado e furioso, o álbum Legal (1970) ainda não teria composições de Waly. Mas o poeta estava presente na capa, em uma das imagens que flutuavam sobre os cabelos ondulados de Gal, na colagem de Oiticica que reunia amigos queridos, astros pop e presos políticos. Em um ensaio do espetáculo Deixa sangrar, que estrearia no Teatro Opinião em 6 de janeiro de 1971, Waly compartilhou com Macalé um pedaço de papel com uma letra que achou que a cantora poderia incorporar ao roteiro. Em quinze minutos, Macalé musicou Vapor barato — inicialmente sob um arranjo roqueiro, que demandava um canto apressado, ofegante. Inserida no espetáculo, a canção que demarcava o início da parceria entre Gal e Waly, e entre Waly e Macalé, em breve seria alçada ao papel de hino emocional de uma geração de ovelhas desgarradas e silenciadas.
Dunas da Gal, verão 1971/1972. A veloz absorção cultural de Vapor barato credenciaria Waly para dirigir o próximo espetáculo da artista, Gal a todo vapor — que incorporou a alcunha de -Fa-Tal-, termo dramaticamente evocado no título de dois poemas de mesmo nome de seu primeiro livro. Nas palavras de Waly, a canção seria “oposta à tendência ‘liricista’ e nebulosa que predominava. Era direta, frontal, dizendo o que era possível naquele momento de desencanto”. Para o espetáculo, a canção seria relida sob um arranjo melancólico. Em um grito de bicho triste, Gal se dirigia a uma honey baby ausente e projetava sua dor para ser ouvida a grandes distâncias. Assim como na canção, no show estreado em 12 de outubro de 1971 no Teatro Thereza Rachel, o interlocutor da cantora era uma figura difusa: os bronzeados vivíssimos das Dunas da Gal, os amigos exilados mas vivos, os presos políticos mortos e os presos políticos quase mortos que, como a jornalista Miriam Leitão, se fortaleciam nas celas sujas ao repetirem como um mantra canções como Assum preto (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga). Sobre os cacos da democracia, Gal e Waly constatavam o desencantamento do mundo em estado bruto. Mas também propunham saídas. Em um jogo semântico de luz e sombras, a possibilidade de reencantamento do mundo era colocada em cena quando Gal acautelava seus ouvintes a não se assustarem porque a vida era boa. Ainda que em Mal secreto (Waly/Macalé) a cantora se apresentasse como expert em questão de sofrimento, no ato final, quando parte da plateia subia frenética ao palco, ela repetia enfaticamente, gritando em um crescendo, a súplica poderosa de uma composição de Waly e Carlos Pinto: “quero ver de novo a luz do sol”.
Nas trincheiras da alegria, verão 1981/1982. Se em Cantar (1974) Gal recolheria as garras, no fim da década ela se consagraria como uma entertainer da beleza — e da festa. Com o estouro de Gal Tropical (1979), ela incorporou o papel de uma musa das massas, capaz de empolgar e emocionar multidões, uma espécie de precursora das estrelas da axé music sobre trios elétricos. Ao contrário de omissa ou apolítica, como parte da imprensa a classificou à época, Gal instrumentalizou a popularidade robusta que conquistou para se engajar em eventos e campanhas que lutavam a favor da redemocratização, como os shows coletivos do Riocentro. Dez anos após -Fa-Tal-, Gal convocaria Waly novamente para dirigir um novo espetáculo. No dia 30 de janeiro de 1982, Festa do interior estreava no Maracanãzinho para suplantar o raro fracasso que a cantora havia tido com o show Fantasia, no ano anterior, que teve falhas graves de direção e roteiro, segundo a crítica. Com o toque de Waly, Festa do interior uniu as pontas entre requinte poético e comunicação popular, com um roteiro que valorizava a cantora festiva de então e enfocava interpretações mais densas. À época, Waly recordou ao Diario de Pernambuco: “Na época do -Fa-Tal-, o Rio de Janeiro era um grande bode. O show de Gal — as pessoas me diziam — era a claraboia, o lugar de entrar a luz e o ar. A época hoje é outra”. O poeta definiu Festa do interior como “uma festa para a massa, concebida sem nenhum sentimento de culpa ou medo”, e finalizou: “estou com Oswald de Andrade: a alegria é a prova dos nove!”. Em uma espécie de ressaca antecipada da ditadura, Gal se afastava de sua persona política em definitivo e abraçava plumas, paetês e performances esfuziantes, com grande força popular. Conscientemente ou não, ela contra-atacava o terror diretamente das trincheiras da alegria, munida de potentes balancês, blocos do prazer e corações pegando fogo.
Um dia de domingo, primavera de 1985. Gal e Waly ainda viveriam dois atos antes de encerrar o ciclo da parceria entre os dois, que invariavelmente espelhou os ciclos que a própria democracia brasileira atravessou, isto é, do período mais violento da ditadura militar ao seu gradual recrudescimento e seu fim patético e confuso, que teria como fruto natimorto uma ainda vulnerável ideia de democracia. Para Gal, Waly era uma espécie de consultor de revoluções artísticas. Quando quis deixar para trás a bem-sucedida persona de entertainer da beleza para se inserir no desafiante mercado de pop e rock nacionais que passava a dominar as rádios, foi ao poeta a quem ela recorreu. Depois do sucesso do álbum Profana (1984), que marcava uma mudança de gravadora e a aderência a composições românticas massivas ou de atmosfera roqueira, ela quis repetir o êxito no projeto seguinte e convidou Waly para a empreitada. O poeta produziu para a cantora o estrondoso Bem bom (1985), disco no qual Gal conciliava a sua geração de MPB consagrada com o rock e o pop nacionais de nomes como Cazuza e Marina Lima. Com destreza, Waly lançava a cantora de volta ao futuro, como sugeria a letra da canção homônima, com Ricardo Cristaldi: “Sempre recomeça a dança/ A mesma dança da sinuca vital”. No Brasil em que Tancredo Neves foi eleito indiretamente o primeiro presidente civil em mais de vinte anos, mas, três meses depois, morreria junto aos ânimos políticos ligeiramente renovados do país, um dos poucos consolos possíveis era a voz sempre presente de Gal, pedindo docemente, como se deliberadamente alheia ao fim do mundo: “faz de conta que ainda é cedo...”.
Ladeiras do Pelô, 1990. Após um passo em falso com o superpop Lua de mel como o diabo gosta (1987), que pecou pela redundância, Gal teve uma relativa rejeição de público e, mais marcadamente, de crítica. Em busca de uma nova revolução pessoal e prestes a embarcar nos difusos anos 1990, que começavam com a expectativa de que a democracia havia vingado com a eleição direta de Fernando Collor de Mello para presidente, a artista convocou Waly para o que seria a última parceria dos dois. Na capa de Plural (1990), Gal aparecia sorridente, de batom bem-marcado e cabelos volumosos, encostada em dois espelhos que projetavam outras Gals sob ângulos diferentes. Era uma maneira de comunicar que o disco produzido por Waly e o saxofonista Léo Gandelman esmiuçava a pluralidade de poéticas e estilos musicais que a cantora podia abraçar com expertise, promovendo unidade entre compositores de contextos e trajetórias díspares, como Beto Jamaica, Braguinha, Arnaldo Antunes e Cole Porter. O espetáculo, estreado no Palace de São Paulo, em 7 de junho de 1990, adensava essa proposta: em uma narrativa de ressurreição e resistência, Gal intercalava composições do cancioneiro romântico popular, peças pop e/ou políticas e os sons afro-baianos contestadores. A movimentação cultural que daria origem ao axé music vinha remodelando a música nacional desde a década anterior, com grupos como Olodum e Raízes do Pelô, que chegaram a acompanhar a cantora no ato apoteótico de encerramento. Meses após a queda do Muro de Berlim, cuja derrocada, em parte, foi atribuída ao insucesso da reforma Perestroika, instituída pelo ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbatchov, Waly brincava com a imprensa ao dizer que ele seria o Gorbatchov baiano de Gal, e Plural, a Perestroika, em referência à reviravolta na carreira da cantora. “Dirigir Gal foi, às vezes, como realizar os doze trabalhos de Hércules. Se em alguns momentos ela era doce, em outros mostrava-se difícil. Mas o resultado foi um bom e feliz casamento”, contou o poeta ao jornal O Globo. Embora o disco tenha vendido menos em comparação às estatísticas da Gal musa das massas, a crítica voltava a dispor a cantora como um avatar da modernidade. A artista ainda fazia a ponte entre Tropicália (Caetano Veloso) e Brasil (Cazuza/George Israel/Nilo Romero), alertando que os anos 1990 davam partida sobre um terreno político de areia movediça, o que se adensaria, na sequência, com o confisco das poupanças e o impeachment de Collor. Com o encerramento da parceria em Plural, a obra em conjunto de Gal e Waly constatava com coragem e beleza que, mais do que a alegria, a democracia era a verdadeira prova dos nove.