Ilustração Púchkin RubensFigueiredo LauraMorgado

Como acontece com tanta gente, meu primeiro contato com o romance em versos Evguiêni Oniéguin se deu por meio da ópera homônima de Piotr Tchaikóvski, composta entre 1877 e 1879. Diretamente baseada no livro de Aleksandr Púchkin, escrito cinquenta anos antes, a obra-prima do compositor russo, no entanto, se constrói de forma autônoma. Com propósitos distintos e coerência própria, a ópera acrescenta alguns versos e cenas, suprime outros e, sobretudo, subtrai a voz e a perspectiva do narrador do romance. Desse modo, desaparecem as digressões, as ironias, os saltos no tempo e as divertidas, ou emotivas, interpelações dirigidas ao leitor, aos personagens fictícios e a figuras contemporâneas do narrador.

Portanto foram estes elementos que mais me surpreenderam ao ler, finalmente, o livro de Púchkin. Bem como a imagem de Oniéguin que o romance projeta, sem dúvida um tanto diversa da que vemos e ouvimos na ópera. O drama musical de Tchaikóvski calca a nota trágica e romântica de modo mais direto e mais fundo e, nesse caminho, obtém um sucesso tanto mais impressionante porquanto, em tese, parecia algo inviável. Já o romance, por seu lado, sem silenciar a pauta romântica nem mitigar sua força – de resto presente no próprio enredo – torna tudo isso mais problemático e mais complexo.

Esta é justamente a função do narrador, com suas intervenções atrevidas e irreverentes, mas também da própria construção do livro em seu conjunto. Nele o leitor encontrará estrofes incompletas ou de todo suprimidas pelo autor, além de capítulos deslocados e até apagados, e um final em aberto. O próprio Oniéguin tem os contornos de sua identidade questionados pela personagem Tatiana, que se pergunta: “O que é ele? Mera imitação,/ Espectro sem corpo e sem sentido [...]/ Reflexo de uma alheia visão [...]/ Ou será ele mera paródia?”. Isto da mesma Tatiana que, antes, na famosa carta dirigida a Oniéguin lhe pergunta diretamente: “Quem é você? Anjo protetor/ Ou astucioso tentador?”. Não à toa, o narrador recorda, ao final, que um dia “entreviu vagamente” seu “romance livre” através de um “cristal mágico”. Tudo isso, porém, sem prejuízo da carga de teor realista que se corporifica na contextualização histórica dos fatos, dos personagens e do próprio narrador. Ou seja, em sua ambivalência, em seu enquadramento panorâmico, o livro exprime uma transição, patente não só na passagem da poesia para a prosa (afinal, se trata de um romance em versos), mas também na forma como apreende as grandes transformações históricas em curso.

Para alguém que vem teimosamente traduzindo livros russos há tantos anos, Evguiêni Oniéguin tinha de ser uma espécie de meta no horizonte, ainda que inalcançável: uma miragem que, dia sim, dia não, acena e oscila, fugidia, e depois desaparece. O que afinal me empurrou a dar o primeiro passo não cabe a mim revelar. Mas é justo que a pessoa que, por acaso, ler este texto saiba que, se dependesse só de mim, eu nunca teria começado a contar sílabas batendo, uma a uma, a ponta dos dedos na madeira da mesa, ao lado do pão e do café da manhã, nem sairia à caça de rimas nos desvios inóspitos da memória e dos dicionários. De um jeito ou de outro, o fato é que tais loucuras tinham o efeito momentâneo de apagar uma parte do mundo à minha volta. E aqui devo apontar uma coincidência estranha e curiosa.

Quase toda minha tradução de Evguiêni Oniéguin foi escrita durante o auge da pandemia da covid, no período anterior ao início da vacinação, quando quem podia tentava manter-se em isolamento. Em paralelo, no ano de 1830, além de escrever muitas outras obras, Púchkin concluiu a redação dos capítulos finais de Evguiêni Oniéguin numa propriedade rural em Bóldino, onde se viu isolado durante alguns poucos meses, por força da epidemia de cólera que grassava na região e mantinha bloqueadas as estradas. Foi o chamado “outono de Bóldino”, linda expressão que em russo, a partir daí, passou a designar uma ocasião particularmente criativa e produtiva. Terá sido esse o meu pobre “outono de Bóldino”?

Na prática, primeiro eu traduzia verso por verso literalmente. Depois tentava entender o sentido geral da estrofe, suas referências e, quando era o caso, localizava as mudanças de tom, registro, perspectiva. Em seguida, tendo em vista o esquema de rimas e de sílabas métricas, já fixado na mente (pois ele não muda), eu batalhava para encontrar, em português, palavras e sequências sintáticas capazes de comportar o sentido geral da estrofe e que, ao mesmo tempo, na esteira de alguns discretos efeitos acústicos, afunilassem meus versos nas rimas de que eu, como um maluco, precisava.

No conjunto, minha preocupação era de que o leitor, se algum dia ele aparecesse e abrisse o livro, pudesse ler de fato um romance, como era o desejo do autor. Ou seja, um texto que conta uma história e no qual a sequência, a fluidez e a concatenação fossem a tônica e o motor da leitura. Mas tudo isso a despeito das interpolações, evasivas e digressões em que o narrador se esmera e que, afinal, poderiam constituir o coração do livro, se neste romance tão multifacetado a vida mesma, a verdadeira vida – aquela que nos é roubada todos os dias e que a literatura, afinal, às vezes tenta resgatar – não pulsasse com múltiplos corações.

Agora, feito o trabalho, só me resta repetir o final da estrofe LX do primeiro capítulo de Evguiêni Oniéguin:

Darei como pasto aos jornalistas
Os frutos duros de minha lida.
Vá, minha criação recém-nascida,
Para as margens do Nievá e resista,
Até ganhar-me o tributo da glória:
A intriga, o insulto e a palmatória!

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