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No prólogo que escreveu para a edição espanhola dos contos completos de Roberto Bolaño (1953-2003), lançada em 2018, a escritora chilena Lina Meruane chama atenção para a estranha reiteração de uma sentença (“triste e ameaçadora”), que aparece, de formas variadas, em inúmeros dos seus livros: nunca más lo volvió a ver, ya no nos volvimos a ver ou ainda nunca más se volverán a ver. Meruane se questiona como um autor “com tantos recursos estilísticos” teria se prestado a repetir a mesma ideia de frase, obra após obra. Para ela, não poderia ser um mero descuido, e, possivelmente, na insistência desse “nunca mais” palpitaria algo que resistiria à perspectiva de extinção que a própria expressão guarda em si. O prólogo, inclusive, tem como título Nunca más volvió a verlo. (Não posso deixar de lembrar aqui um possível eco do nevermore do poema O corvo, de Edgar Allan Poe).

A observação de Meruane me levou a pensar numa outra repetição, que sempre me inquietou nos textos do escritor chileno. Encontrada desde suas anotações iniciais da década de 1970 e seguindo até a alguns dos contos e romances mais célebres da sua produção final. Não me refiro a uma frase ou palavra específica, mas a um comportamento, que nos remete ao sintoma maior do clandestino e da clandestinidade. O gesto de telefonar, muitas vezes, é interrompido ou nem mesmo chega a constituir um diálogo. É partido por uma crise de choro, torna-se inaudível por algum forte ruído ambiente, descontinuado por falta de créditos ou, então, se telefona apenas para permanecer em silêncio. Ou mesmo alguém prontamente desliga. Os recursos de interrupção são os mais diversos.

Em O Olho Silva, de Putas assassinas (2001), o personagem que dá nome ao conto, um fotógrafo chileno exilado na Europa, liga para o ex-amante francês nas últimas linhas da história. Mas mal consegue pedir a ajuda que motivara a ligação: “E o Olho riu sem parar de chorar, disse que era isso que faria. E desligou o telefone. E continuou chorando sem parar”.

No conto Gómez Palacio, também de Putas, a diretora de uma escola mexicana conta para o narrador, um outro exilado chileno, que tem uma amiga cantora com o costume de lhe telefonar no meio da madrugada. “Quando meu marido atende, ela desliga”, lembra. “Imaginei o marido da diretora com o telefone na mão. Pega o telefone, diz alô, quem é, depois ouve desligarem do outro lado e também desliga, quase que por reflexo”, destaca o narrador. Num dos textos que formariam seu último livro publicado em vida, Amberes (2002),[nota1] originalmente escrito em algum momento da década de 1970, lê-se: “Manhã de domingo. Hoje, como ontem à noite e anteontem, liguei para uma amiga em Barcelona. Ninguém atendeu. Imagino por alguns segundos o telefone tocando em sua casa onde não há ninguém”. Num outro fragmento de Amberes encontramos: “Querida Lisa, teve uma vez que falei com você por telefone mais de uma hora sem perceber que você tinha desligado”.

As ligações interrompidas ou abortadas também são frequentes numa obra apropriadamente intitulada de Chamadas telefônicas (1997), que começa com uma sequência de histórias sobre escritores fracassados. No conto Sensini, o narrador, após uma longa troca epistolar com outro escritor, e ao saber da morte do filho deste, diz que gostaria “de haver telefonado, mas acho que ele nunca teve telefone e, se teve, eu não sabia o número.” Na história Enrique Martín, Arturo Belano, um dos codinomes de Bolaño, liga para a ex-companheira do personagem que nomeia o conto (outra vez um amigo escritor), ao saber do seu suicídio: “[...] e liguei para ela. Demorou para se lembrar de mim. Sou eu, disse, Arturo Belano, fui à sua casa cinco vezes, eu vivia então com uma mexicana. Ah, sim, disse ela. Depois permaneceu calada e pensei que havia alguma coisa com o telefone. Mas ela continuava na linha [...] Ainda falamos mais um pouco, creio que de seus nervos em frangalhos, depois as moedas acabaram (eu ligava de Girona) e a comunicação foi cortada”.

No conto seguinte, Uma aventura literária, há os desencontros telefônicos entre dois escritores, um com carreira estabelecida, nomeado apenas como A, e outro com pouco ou nenhum reconhecimento, nomeado apenas como B: “Seu telefone quase sempre dá ocupado ou a secretária eletrônica é que atende, e quando isso acontece B desliga no ato, pois tem pavor de secretária eletrônica”. B é outro dos codinomes de Bolaño. A ficção breve que nomeia o livro retoma as desventuras de B, agora às voltas com a resolução de um caso policial: “Uma semana depois o irmão de X lhe telefona para dizer que a polícia pegou o assassino. O cara atormentava X, diz o irmão, com chamadas anônimas. B não responde. Um ex-namorado, diz o irmão de X. Fico contente em saber, diz B, obrigado por me avisar. O irmão de X desliga e B fica sozinho”.

O “nunca mais” que inquietou Meruane ou as chamadas telefônicas fracassadas que destaquei nos parágrafos anteriores são exemplos da engrenagem de interrupção em série que marca a obra de Bolaño. Uma engrenagem que emergiu com força na produção que veio a público entre os anos de 1996 e 1997 e que se tornou basilar para seus romances mais famosos, Os detetives selvagens (1998) e o póstumo 2666 (2004).

Entre 1996 e 1997, Bolaño publica A literatura nazista na América, em que uma das histórias se desdobra na novela Estrela distante, e, por fim, lança Chamadas telefônicas. Todos os três, compilações de pessoas que somem sem deixar qualquer vestígio (e por isso mesmo acabam sendo cultuadas ‒ voltamos ao “nunca mais” como signo contra a própria extinção), de escritores que deixam de escrever ou que nunca conseguiram desenvolver uma produção. Ou mesmo escritores que se dedicam a editar revistas literárias que, na maioria das vezes, não passam do primeiro número. Em Bolaño, ou se some ou se para de escrever ou se silencia (ou se chora) ao telefone.

Parece que, após décadas como poeta anônimo, que tenta sobreviver, exilado na Espanha, disputando concursos literários de toda natureza, Bolaño chega à metade dos anos 1990 com o conhecimento necessário para escrever (agora em prosa) sobre aqueles que precisam interromper seu país e embarcar num exílio, abandonar suas relações pessoais ou mesmo interromper/fracassar (n)o texto. Num poema do seu livro mais recente, Risque esta palavra (2021), a poeta mineira Ana Martins Marques escreve sobre essa espécie de “dobra” na produção bolaniana: “É possível que os poemas sobrevivam/ Como fantasmas de poemas/ assombrando os romances/ Alguns talvez creiam/ que o prosador ofuscou o poeta/ fracassado// Ou o fracasso da poesia/ infiltrou-se em sua prosa/ como um mendigo/ numa festa/ um mergulhador/ num lago/ um cão/ num teatro?”.

Os detetives selvagens, ao mesmo tempo em que conta a história da revolta de jovens poetas contra os grandes escritores financiados pelo Estado, retrata o fascínio exercido por Cesárea Tinajero, poeta mexicana da vanguarda modernista que, após alguns poemas visuais, desaparece no deserto. E justamente essa sua “interrupção” acaba se revelando a grande força de atração do que passaria a exercer nas novas gerações de poetas. Em 2666, o livro tem um fim abrupto com a palavra-destino “México”, como se tivesse sido interrompido ou, deliberadamente, abandonado. O que nos remete a, talvez, o caso mais famoso de interrupção da literatura do século XX, O castelo, de Franz Kafka.

O autor tcheco interrompeu a escrita do livro no meio da frase “Ela estendeu a K. a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse”. A interrupção é de 1922. Kafka morre apenas dois anos depois. Fazer um paralelo é, claro, irresistível: O castelo é um romance incompleto e sem final (nas palavras do ensaísta italiano Roberto Calasso); enquanto 2666 é um romance completo e sem final.

No centro de toda essa interrupção, em Bolaño parece habitar o problema da importância da memória, a memória daqueles sobreviventes das ditaduras da América Latina entre as décadas de 1960 e 1980, quando da chegada do fim do século. Um passado ainda recente de perseguição e silenciamento, mas não a salvo do perigo das lembranças. Uma lembrança, sabemos, é como um cheiro; não pode ser evitada. Mas nem sempre é confiável.

Em seu livro sobre o problema dos testemunhos que tentaram dar conta da história argentina recente, Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva (2005), a crítica Beatriz Sarlo aponta o quanto nossa relação com o passado sempre tende ao conflito: “A ele (ao passado) se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum”.[nota2]

Talvez seja por tensionar de forma tamanha nossa relação com o passado, com o nosso tão recente passado, a partir das suas engrenagens de interrupção, que Bolaño tenha alcançado um local tão central na literatura contemporânea. Quando aproximo as palavras “passado”, “memória” e “Bolaño” na escrita desse texto, penso num ensaio de Silviano Santiago sobre Ana Cristina Cesar, chamado A falta que ama. Para Santiago, os textos confessionais da poeta carioca abrem espaço para uma intimidade que não é introspectiva. E, sim, prospectiva. Paradoxalmente voltada para o futuro.

De forma semelhante, ao colocar a engrenagem de interrupção para funcionar em seus textos, Bolaño parece dizer que para apenas para continuar. Suas interrupções nos levam a prospectar. Ou mais além: a desconfiar, como “detetives perdidos no espelho convexo dos Arnolfini”, tal e qual escreveu num poema que se encerra justamente falando sobre os problemas da nossa época, das nossas perspectivas e dos “nossos modelos de Espanto”.

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Este texto foi motivado por uma série de efemérides que marcam o nome de Roberto Bolaño em 2023: 70 anos de nascimento, 20 anos de morte, 35 anos do lançamento de Os detetives selvagens e 30 anos do seu romance de estreia solo, Pista de gelo. Os álibis, dessa forma, estão postos.


NOTAS
[nota1] Amberes foi publicado no Brasil na edição com a poesia completa de Roberto Bolaño (intitulada A universidade desconhecida), mas com o título de Gente que se afasta, em tradução de Josely Vianna Baptista. As demais citações da ficção de Bolaño reproduzidas neste texto foram traduzidas por Eduardo Brandão.

[nota2] Tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

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