Existe uma diferença brutal entre a percepção de escravidão como “marco civilizatório” e o entendimento de que foi um contexto uniformemente negativo, com consequências vívidas que se atualizam diariamente. Embora a primeira forma de representação tenha forjado o imaginário nacional, com toda a sequência de violência gráfica, mistificações e naturalizações, há contranarrativas que resistem, refletem e fazem emergir a subjetividade plural, as estratégias de sobrevivência e pontos de ancoragem mais prolíficos. Desta perspectiva preciosa florescem os romances gráficos de Marcelo D’Salete e, em especial, seu novo lançamento: Mukanda Tiodora.
A premissa de Mukanda Tiodora foi um desdobramento do processo de pesquisa para o premiado Angola Janga (Veneta, 2017), quando o quadrinista conhece a história de “Teodora Dias da Cunha, ou simplesmente Tiodora ou Tiô” na obra Sonhos africanos, vivências ladinas (1998), da historiadora Cristina Wissenbach. Teodora foi uma mulher negra nascida no Congo e trazida para o Brasil como escravizada no século XIX, casada com Luís e mãe de Inocêncio. Em 1866, ela contou com a ajuda de outro escravizado, o Claro Antônio dos Santos, para escrever cartas direcionadas, em especial, ao marido e filho, com o objetivo conquistar sua alforria, reunir sua família e poder voltar ao continente africano.
No início do volume, o público leitor é introduzido ao contexto histórico do Brasil do século XIX e ao fato de que o desenvolvimento de São Paulo é costurado à exploração da força de trabalho de pessoas negras e às contradições do cotidiano. E é esse o tom da narrativa: entendendo o plano geral, mas focando em experiências particulares para que seja possível compreender a história como uma articulação de estrutura política, crenças, práticas cotidianas, imaginário e desígnios. Neste ponto, as escolhas narrativas evidenciam a virulência do sistema escravista, a brutalidade desse sistema no cotidiano de pessoas comuns e o modo como diferentes pessoas negras encontravam caminhos, ainda que estreitados pela força coercitiva do Estado, das instituições, dos donos dos meios de produção e de cidadãos desfavorecidos treinados para o ódio.
Mukanda, aliás, do kimbundu, é um vocábulo polissêmico que pode significar “rito de passagem”, “A Carta” (de alforria) e “texto impresso”; na obra é usada como sinônimo de “carta”, mas carregando a complexidade significativa, já que a intenção de Tiodora com a elaboração das correspondências era conseguir sua liberdade e fazer a travessia em retorno para uma nova vida. Outro fato interessante sobre o título diz respeito à sonoridade: em Mukanda Tiodora, além da grafia da oralidade sudestina, que aproxima “Te” de “Ti” e transforma Teodora em Tiodora, a palavra Mukanda guarda a elisão do “da”, na frase mukanda da Tiodora, ou seja, “carta da Tiodora”. A dignidade que a obra confere às variações linguísticas também aparece nos diálogos (as traduções no rodapé favorecem o ritmo de leitura) entre personagens negros e indígenas, que misturam termos de suas línguas maternas, articulações mais familiares, e tudo isso é incorporado do modo como deveria ser na prática. Compreender que a língua não é homogênea e que sujeitos marginalizados não apenas são falantes competentes da língua, como também a enriquecem, é uma das camadas da disputa discursiva que se empreende em uma sociedade com tantos resquícios coloniais.
(RE)IMAGINANDO E CALIBRANDO O OLHAR
Ciente de que dicotomias simplificam a realidade complexa, a voz narrativa de D’Salete em Mukanda Tiodora busca um caminho para abordar a escravidão enquanto contexto, não como tema central, de modo que temos um movimento de aproximação e de afastamento temático e visual, presente na composição das páginas. No início da história, a distribuição dos dois quadros amplos nos apresenta o céu olhado de baixo e o rio, representando um senso de temporalidade diferente do que prevalece na sequência de acontecimentos. Assim, em silêncio, conhecemos o início, que também é fim (porque numa lógica sankofiana, o tempo não é linear nem necessariamente progressivo), o cenário natural onde é possível se conectar com as forças que impulsionam o mundo.
Nessa primeira aparição de Tiodora, em uma sequência devocional, temos contato com sua perspectiva de vida terrena movimentada pelo destino, sonho ou o que a escritora afrofuturista Octavia Butler chamou de “obsessão positiva” em seu ensaio homônimo. A subjetividade de Tiodora precede qualquer relação de violência e submissão que o contexto impõe, de modo que, ao despertar para retomar a rotina de trabalho como vendedora de frutas, uma expressão cabisbaixa e o permanente silêncio, além do aumento significativo das texturas à sua volta, evidenciam que, entre o seu desejo de mudança da realidade e os impedimentos materiais, emerge uma decisão: manifestar o sonho em papel, se conectar com seu marido, Luís, e, assim, materializar a iniciação já vivida em sonho.
Em seguida, enquanto Tiodora caminha pelas ruas de São Paulo, em 1866, nosso olhar é direcionado para a arquitetura vista de baixo – uma representação simultânea da perspectiva geográfica e da experiência social da protagonista – e também temos detalhes em sequência dos instrumentos e técnicas de trabalho. Quando o carpinteiro Claro Antônio dos Santos é introduzido à história, temos um primeiro contraponto, que mostra a diversidade que a expressão “população negra” apresenta, o que vai ocorrendo até o final da história. Embora a condição seja uniformizante, porque aplica uma força cultural, legal e subjetiva nas relações, a plasticidade da subjetividade humana cria condições em que toda a sorte de situações contraditórias são potenciais.
É assim que o quadrinho, apesar de não se furtar de mostrar a violência colonial contra o corpo e a psique negras de modo consistente com a realidade vívida e com uma rica conexão com o presente, apresenta elementos distintivos, estruturais (o vernáculo negro também não é uniforme), religiosos, estéticos, performativos e insere a afetividade como um elemento estruturante da história da possivelmente sexagenária Tiodora.
Ao longo dos cinco capítulos, sempre introduzidos por epígrafes que ora são excertos das cartas de Tiodora ou de Luiz Gama, ora são cânticos, conhecemos e acompanhamos personagens cujas construções subjetivas e histórias pessoais evidenciam a complexidade da São Paulo oitocentista. Primeiro temos Tiodora, nascida no continente africano, com uma relação afetiva que precede o contexto de escravidão, e Claro, um carpinteiro letrado, ambos trabalhadores urbanos que ampliam a narrativa uniforme – mais conhecida – de escravidão rural. É exatamente essa mobilidade que possibilita a comunicação, favores, cumplicidade e a construção de afetos dessa geração com os mais novos, dentre eles Joana, uma menina com trança raiz, calçada e com vestes em boas condições. Por meio dela, que deveria entregar a mukanda ao tropeiro, conhecemos Benê – Benedito – um garoto com o cabelo natural, uma cicatriz no supercílio direito e vestes mais puídas.
Esse movimento das ideias de Tiodora à carta que Benê toma de Joana, assumindo pra si o compromisso de fazer a correspondência chegar ao destinatário, confere uma espécie de materialidade para o sentimento de gratidão que ele, uma criança livre porém órfã, tem por aquela que dele cuidou e o fez se sentir amado. Uma relação como essa tem uma linha tênue entre a sensação de dívida e a generosidade, mas em Mukanda Tiodora é inequívoco o desejo do menino entregar a carta como se fosse seu próprio destino. O garoto, assim, decide por seguir uma prática enraizada numa matriz cultural banto, cujo ethos é focado no bem-estar da coletividade (“estou bem se todos nós estivermos”).
À medida que avançam os quadros, retratando a vida de trabalhadoras e trabalhadores livres e escravizados, uma narrativa carregada de texturas se infiltra, revelando um dos caminhos no campo minado de ascensão social disponível a negros por meio da exposição do cotidiano de um feitor negro conhecido por sua implacável caçada e repressão de fugitivos. Representando essa contradição sem demonizar o personagem, podemos compreender o processo de conscientização pelo qual ele passa, despersonificando assim a contradição e o retratando como um efeito colateral de um sistema inescapável.
No terceiro capítulo, a jornada do menino Benê é uma sequência silenciosa que alivia o ritmo da narrativa. Isso ocorre por meio de quadros maiores e áreas negativas, mais simétricos, sem tantos recortes e encaixes das sequências mais dinâmicas do capítulo anterior. Essa passagem, aliás, em que o olhar se demora nos detalhes do tempo e do espaço, é um traço da poética de D’Salete que observamos em outras obras, uma espécie de musicalidade própria. É isso que confere um equilíbrio estético e político, coletivo e particular, transportando o público para o passado com cenas que criam paralelos com o presente. A escravidão, a punição em público, as liteiras, tudo coexistia como experiência assustadora do real, àquela época, de forma tão naturalizada quanto a violência policial, o empobrecimento sistêmico e o racismo cotidiano no presente.
Em contraponto à imagem construída pelos livros didáticos tradicionais, em Mukanda Tiodora acompanhamos ainda abolicionistas negros como Luiz Gama e José Ferreira de Menezes e o poder de suas ideias. Embora não façam parte da trama particular do título, enquadrar essas figuras retoma o aspecto de plano geral do que acontece em São Paulo à época e reitera o papel teórico-prático de intelectuais negros no movimento abolicionista. A luta política também é uma disputa no âmbito discursivo, sobretudo no contexto em que a alfabetização era proibida às pessoas negras.
TORNANDO-SE SUJEITO
A escrita é uma das formas de se transformar em sujeito, ato que, segundo Grada Kilomba em Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano (Cobogó, 2019), insurge quão um ato político. E este é o caminho que Tiodora encontra, não apenas para expressar seus anseios, desejos, utopias, destino e objetivo incansável de libertação, como também para reconstruir laços de amor rompidos pela estrutura escravista do Brasil no século XIX. Ainda que não sejam de próprio punho, a retórica presente nos registros mostra o ímpeto dessa sobrevivente como uma estratégia – e uma estética – de descolonização que, inclusive – dada a temática e a linguagem intensa –, borra os limites do entendimento comum sobre o Romantismo e seus protagonistas.
Tiodora é, portanto, uma personagem com suas próprias motivações, embora seja impedida de presentificar sua agência. Essa tensão se replica na própria estrutura da obra, em que observamos Benê se movimentar em direção ao destinatário da carta representando “Tiô”; mesmo sendo deixado na roda dos expostos, ser órfão não o impede de ser reiteradamente protegido pela coletividade. Sendo ele mesmo um representante do ethos, sua trajetória presentifica Tiodora e alinha a ponta final ao início da trama, dando uma circularidade simbólica (sobre tempo, herança filosófica e tradição religiosa) e prática à narrativa ficcional que alinha uma intenção afrofuturista (reconstruir o passado para entender o presente e construir o futuro) à fidelidade factual e à arte. E é assim que, pela mukanda da Tiodora, ficcionalizada por Marcelo D’Salete, nós conhecemos e retomamos um passado que enriquece – e muito – o nosso futuro.